segunda-feira, fevereiro 06, 2006



Desde que me conheço, mais concretamente desde os três anos, que vivo em cafés e restaurantes. Este hábito foi adquirido através de meu pai, homem bem falante, devotado de tertúlias, que a partir dessa idade me achou já capaz de o acompanhar junto da sua roda de amigos. Claro que eu adorava, porque era mimada por todos, com chocolates, rebuçados e outras guloseimas afins.

Foi nesses sítios que aprendi a calar, e a olhar em redor. E comecei a apreciar ver os tiques das pessoas, as suas atitudes, o que consumiam, enfim, ser uma pequena observadora.

Com o correr do anos o hábito não se perdeu, e num desses inúmeros locais por onde já passei, conheci uma figura singular. O meu grupo de amigos tinha-se atribuído a alcunha de "o corneta", pois a sua entrada no café nunca passava despercebida, tal o volume da sua voz de estridência metálica. Era baixote, anafado, assemelhando-se bastante ao Vasco Santana. As suas conversas versavam preferencialmente o futebol, e quando para nosso azar dava algum jogo na televisão, acabávamos por ter de sair, sob risco da integridade do nosso tímpano ficar ferida. Contudo, nunca sentimos nenhum sentimento agressivo em relação a ele, devido à sua aparente alegria de viver que partilhava "altamente" com os outros.

Uma noite, das muitas que me apetece sair solitáriamente, e ir a algum bar beber um copo, olhar os outros, ou conversar com alguém que apareça meu conhecido, ou não, mas que sirva para trocar ideias, deparei com o corneta, muito solitáriamente encostado ao balcão. Nesse local tocava-se jazz e ele parecia absorvido de tal forma pelo som que nem me via. Embora a minha relação com ele nunca tivesse ido além dum aceno de cabeça e uma boa tarde, um pouco entre dentes, decidi encostar-me igualmente ao balcão e entabular conversa.

Curiosamente, é bastante normal sem grande esforço, e particularmente na noite, muito mais propícia ao abrir dos sentimentos, ter gente a desbobinar-me as suas mágoas. Logo, ao cabo de pouco tempo fiquei a saber que era um quarentão solteiro que vivia com uma mãe idosa e decrépita, a quem prestava assistência quase permanente, tal o estado em que a senhora se encontrava. Ouvi-o atentamente e solidária, sem proferir palavra, pois este tipo de situações deixam-nos sem grande capacidade de resposta.

No entanto o que realmente retire deste encontro foi, quando em jeito de desculpa, me disse: Sabe, as pessoas devem pensar que sou alegre quando me vêem a beber as minhas cervejolas. No entanto, aquele bocado que estou no café, é o único escape do meu dia, entre o trabalho, e tratar da minha pobre mãe.

Até hoje nunca mais tornei a ver o corneta, mas soube que pouco depois desse encontro morreu de enfarte, deixando a "pobre mãe" à mercê da tenebrosa assistência pública.

Teresa David

3 comentários:

Conceição Paulino disse...

dizer algo adequado seria repetir o k acima deixei, embora pudesse usar outras palavras.terrível é a vida, na maioria dos casos.
Bjs de luz e paz e um muuiiiitooooo Bom dia ;)

Raquel Vasconcelos disse...

Nunca ninguém sabe bem quem somos...


Conheci em tempos uma "miúda" que um dia disse a toda a gente que se ia divorciar. O espanto foi geral, era tão comum ela contar tanta coisa da sua vida e ninguém esperava esta... A surpresa nunca abandonará a recordação desses dias...

Isabel José António disse...

Ser observadora tem estas consequências: aperceber-se da dor e do sofrimento dos outros, interessar-se por eles, depois vir aqui e compartilhar connosco estas "histórias de vida"!

Isabel