sábado, agosto 23, 2008


MARIA JUDITE DE CARVALHO

Andar a pé tem enormes vantagens. Não é só a questão de nos fazer bem ao corpo, mas também podermos ver pormenores que de carro nos passam completamente despercebidos.

Um destes dias tive de fazer uma caminhada de alguns quilómetros para ir buscar o carro que tinha deixado na revisão. Foi assim que descobri uma rua onde já passara de carro inúmeras vezes, de nome Maria Judite de Carvalho.

Na adolescência li o livro “tanta gente Mariana” que me despertou curiosidade para a obra da já citada autora da qual fiquei fã a par com a Irene Lisboa, que, por qualquer razão que desconheço, salvo serem ambas mulheres que falam de Lisboa e de pessoas coloco no mesmo cesto de qualidade e grandeza.

Infelizmente, nem uma nem outra são autoras tão conhecidas como mereceriam, mas isso faz parte da forma como este País trata os seus escritores, não lhes dando o destaque devido, a menos que, como o Saramago, sejam laureados a alto nível, que aí seria demais não falar deles.

Serviram as palavras anteriores para dizer que nos anos 80 tive o prazer de passar férias em Tróia ao mesmo tempo que o casal Urbano Tavares Rodrigues/Maria Judite de Carvalho.
Tróia sempre foi muito frequentada por escritores, devido a APE ter, na altura, um contrato com a empresa gestora que lhes proporcionava grandes descontos nas estadias. Disso também eu usufrui porque na altura vivia com o Virgílio, também escritor. Claro que agora na era do Belmiro de Azevedo essas mordomias terão acabado certamente, porque transformou aquele espaço num resort de luxo.

Uma noite ao irmos jantar ao restaurante, encontrámos já sentados o Urbano e a Judite que gentilmente nos convidaram para sentar e comermos todos juntos. O Virgílio a dado passo disse á Maria Judite que eu era uma admiradora sua. Fiquei um bocado corada e intimidada, embora de imediato já tivesse notado que a senhora que á minha frente se sentava, era alguém despretensioso que passaria por uma esposa burguesa apenas dona de casa, se eu não conhecesse a sua obra.

Mulher gentil e discreta, de poucas palavras, contrastando fortemente com as suas personagens que eram povoadas de grandes revoltas, frustrações, em suma, sentimentos negativos trazidos pela idade e vidas infelizes, não guardo na memória a nossa conversa, que, creio terá tratado de coisas bastante comuns, onde nunca aflorou o mal que já a minava, um cancro, que em 1998 acabou por derrotá-la. Mas o seu ar calmo, o lembrar-me permanentemente das palavras escritas, fizeram ficar empolgada pelo encontro, onde, o Urbano falou mais, como sempre, no seu estilo melado, que lhe valeu em certos meios a alcunha do “lésbico”, por adorar fazer a corte ás alunas da faculdade, o que contrastava com a sua forma quase afeminada de se exprimir.

Recordo igualmente as tardes na piscina, onde soube que o Urbano teria sido campeão de natação, o que comprovei ao vê-lo atravessar em crowl com uma rapidez de fazer inveja a qualquer jovem, a piscina olímpica num abrir e fechar de olhos.

Teresa David-foto retirada da net

segunda-feira, agosto 04, 2008



O POETA E A ACTRIZ


Ao ver no Biography Channel uma entrevista com a Eunice Munoz não pude deixar de me lembrar das vezes que com ela estive, ou nos bastidores do Teatro Nacional D. Maria II ou em Almada quando visitava o Teatro.
O meu companheiro foi muito mais próximo dela do que eu que me limitei a fortuitas conversas de banalidades e particularmente de filhos, assunto recorrente na sua conversa.
Mas sempre senti a sensação que era uma actriz 24 horas por dia, compondo uma personagem a cada momento.
No entanto, falo aqui dela mais por me ter lembrado do seu marido António Barahona, poeta do grupo do café Gelo, a par do Cesariny, António Maria Lisboa, Raul Leal, Herberto Hélder, e tantos outros entre os quais o pai do meu filho. Conheci-o pessoalmente mas nunca troquei uma palavra com ele, talvez por me sentir intimidada com o seu aspecto reservado ou porque não saberia do que haveria de falar. Daí ter estado sentada a seu lado algumas vezes na tertúlia do Largo da Misericórdia, ouvindo os outros sem nada dizer.
Conheço a obra dele e gosto particularmente do poema que fez dedicado á sua mulher da altura, a Eunice, que transcrevo para ajuizarem do seu talento e qualidade.
Curiosamente o grupo do “Café Gelo” tornou-se pouco conhecido, salvo de uma elite de gente ligada á cultura e jovens universitários que estudam o surrealismo como forma de rebeldia social.
Mas, ao fim ao cabo, o que me levou a pensar escrever este texto foi mais exactamente descrever uma situação curiosa passada após a ida á Índia da Eunice com o Barahona. Ela tinha-se convertido por paixão ao seu amado também ao islamismo, como ele tinha feito em 1975 e vestia-se com trajes indianos, lembro-me de a ver a descer o Chiado dessa forma vestida de mão dada com o companheiro.
Segundo me contava o Virgílio a Eunice quando recebia visitas, pelo menos nessa altura, fazia sempre fondue. Entre um garfo na caçarola e outro, o Virgílio perguntou á Eunice se tinha gostado de estar na Índia. Antes disso, o Barahona tinha acaloradamente falado de tudo o que tinham vivido e conhecido nesse País que era a sua paixão do momento.
A Eunice com aquela expressão contida com que sempre fala numa pequena frase foi eloquente, quando afirmou: bem, as crianças tinham tantas moscas nos olhos e na boca!

Em cima, da esquerda para a direita: Lima de Freitas, Mário Henrique Leiria, Eunice Muñoz, Fernando Alves dos Santos e Mário Cesariny de Vasconcelos. No plano inferior, da esquerda para a direita: Arthur do Cruzeiro Seixas, António Barahona e Diogo Caldeira . Foto de 1978.


PÁSSARO-LYRA DE ANTÓNIO BARAHONA



Contemplo Eunice voltada para a luz olhos nos olhos do Solcomo nenhuma águia até hoje se atreveu





E orquídea de altitude demiurgaigual a Beatriz no diadema aos lábios de perguntas a resposta silencia amorosa e lucilante:
Já não pisas a Terra, filho d'Alighieri





Vastas orbes de Anjos sexuados em amor sob os plátanos de lenda adormecem aos pares no leve vácuo





Ó mulher que eu exorto e me confunde sem teu múrmuro, doce consentimento na paixão reesculpida tantas vezes!





A pedra renasceu do Invisível e o inédito escopro a atacá-la: islâmico destino sem mudança,infalível, dirigido, matemático

O Paraíso na Terra é este quarto:céu de fogo, Rosa branca, Rosa mística,hierarquia de pétalas e espírito,objectos femininos sobre as nuvens





Uma aurora boreal, águas de riso,cotovias nas vergônteas, extenso prado e um luar de serena palidez nas antigas pupilas do piano





Paraíso particular ou ilha estanque furtada d'além mar, onde se abrir alcova de nítido crepúsculo em gravura de tons ácidos em áscua





É meio-dia. São dez cantos. Eis a hora florentina da virtude e o número pitagórico da origem. Recomeço a ascensão, o êxtase inúmero





Ó dilema dos Infernos e Empíreo,duas forças na balança em equilíbrio,o desígnio da Musa é que me vence:completo subirei com gravidade





É meio-dia. São dez cantos. Eis a horada sagrada, maviosa morte álacre e Eunice vindoura tem assentoria Rosa eternamente reflorida





O amor é o rei destes lugares,o Profeta conduz a caravana,os guerreiros de Deus bebem frescura e Buda na corola da Rosa branca





com Cristo, a Mãe Geral e Gabriel,coroam a Eunice e a Beatriz De címbalos adornam as hetairase os poetas da danação meticulosa





Paraíso Prometido, minha casa sobre a rocha edificada, com raizes,a mesa onde me estudo, leio tudo,canavial de livros e poema





É meio-dia. São dez cantos. Eis a hora





Je mange Eunice em atitudes altas,na furiosa água materna, aliterado,entoando o zejel mouro espanhol Ad vitam aeternamos lábios, os gritos, o musgo da voz florido!





Oh beijos medonhos, oh ciclone-júbilo,risos potáveis na aurora fatigada,corpos conversados lado a lado exaustos,cicatrizes, pancadaria de sangue!

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Gosto desta poesia poderosa com a força das convicções e sentidos! Mas gostos não se discutem e nem todos têm esta forma de apreciar as palavras!








TERESA DAVID