quarta-feira, dezembro 17, 2008

SERÁ QUE MAIS ALGUMA VEZ UM HOMEM DE 100 ANOS ME BEIJARÁ?

Ontem dia 16, estava eu na minha vida caseira calma e eficiente, que misturo com alguma escrita, filmes e livros, para não me transformar numa marioneta doméstica, quando o telefone tocou e o amigo Evónio me desafiou para ir ao lançamento dum livro com uma entrevista feita pelo Luís Machado ao Mestre Manoel de Oliveira.
Hesitei, ainda temendo que uma saída nocturna com o frio que se faz sentir viesse minar a minha frágil saúde mas não resisti e fui.
A parte da apresentação foi feita pelo escritor José Manuel Mendes, o autor Luís Machado e um retardatário cujo nome se me varreu da memória mas recordo que estava ligado á cinemateca. Infelizmente apesar de me ter deslocado do fundo da sala, a cerimónia estava a acontecer no Martinho da Arcada, para um lugar na frente, não consegui ouvir patavina pelo que decidi ir fotografando apontamentos ligados ao Fernando Pessoa! Lá fora ia de vez em quando quem fumava e acabei por ir também, pois a frustração de assistir a uma conversa que me fazia sentir surda que nem uma porta era demais. Aproveitei e fotografei uma caricatura giríssima feita pelo amigo H. Mourato que também se encontrava no evento que está pendurada á porta do restaurante. H. Mourato, José Correia Tavares Vice presidente da APE e eu


Calaram-se os oradores e estive á conversa com o José Correia Tavares que conheço há muitos anos do tempo em que o meu falecido ainda pertencia ao mundo dos vivos. Recordou-me algumas histórias curiosas vividas em comum com ele.
Quando acabou o lançamento viemos todos para a rua onde tinha sido colocado o beberete. Entre o croquete e água, no meu caso, Martinis e Vinho do Porto no geral, foram chegando os mais colunáveis como o Carlos do Carmo e mulher, o Prof. Veiga Simão o ex-Ministro Laborinho Lúcio e mais alguns, entre eles, finalmente o Manoel de Oliveira também acompanhado da sua mulher, pequenina de estatura mas certamente grande no Ser, para ter sido companheira do Mestre tantos anos da sua vida.
Foi então que se deu o que não esperava. O Manuel de Oliveira olhou para mim baixou-se e deu-me dois valentes chouchos apesar de não me conhecer de lado nenhum. Não tenho imagem desse acontecimento impar para mim, mas ilustro o acontecido com uma foto logo após, onde estou a limpar os óculos que ficaram embaciados pelo calor que me subiu á face, provando que a timidez ainda faz parte do meu existir.
Sou a de chapéu no canto direito, Manuel de Oliveira está de costas a falar com a Rosa Mota e também de costas vê-se a sua mulher

Após esta troca de cumprimentos, todos entraram para a “janta” menos nós, um grupinho de quatro que se constituía pelo Evónio, o escritor Vasco Santos e filha e eu, que jantámos mais calmamente na outra parte do Martinho. O Mourato ainda chegou antes de partirmos vindo do lado dos VIP onde abasteceu a barriga. Seguiram os quatro num táxi. Pelo meu lado fui digerindo o óptimo jantar numa caminhada até aos barcos do Cais do Sodré.
Vasco Santos, sua filha e eu

Joaquim Evónio de Vasconcelos

TERESA DAVID

sábado, dezembro 13, 2008

AZUL

Foto azulada tirada por mim em Veneza

Dizem que fico azul quando alguém morre que eu muito amava.
Não choro, nem grito e muito menos arrepelo os cabelos.
Fico azul e pronto!
O azul também me invade a cabeça quando vejo em redor a arrogância, estupidez ou mentira.
Preciso de calor senão o frio transforma as minhas carnes numa amálgama azul.
Tenho uma tristeza azul que se reflecte em lágrimas verdes de raiva e vermelhas de sangue de revolta.
Mas também é possível verem-me azul de alegria do reflexo das águas marítimas nos momentos em que nelas me deixo envolver.

Teresa David 20 Abr 08

quarta-feira, setembro 10, 2008

foto tirada por mim


ADEUS ATÉ AO MEU REGRESSO
Dia 15, ou seja, na próxima 2ªf, serei novamente operada, pelo que estarei ausente algum tempo, que não sei quanto será, não está na minha mão adivinhar o que se passará de seguida.
Portanto deixo aqui um aceno de adeus até breve para todos aqueles que fielmente me têm visitado ao longo de dois anos com tanto carinho e amizade.
Um enorme beijo
Teresa David

sábado, agosto 23, 2008


MARIA JUDITE DE CARVALHO

Andar a pé tem enormes vantagens. Não é só a questão de nos fazer bem ao corpo, mas também podermos ver pormenores que de carro nos passam completamente despercebidos.

Um destes dias tive de fazer uma caminhada de alguns quilómetros para ir buscar o carro que tinha deixado na revisão. Foi assim que descobri uma rua onde já passara de carro inúmeras vezes, de nome Maria Judite de Carvalho.

Na adolescência li o livro “tanta gente Mariana” que me despertou curiosidade para a obra da já citada autora da qual fiquei fã a par com a Irene Lisboa, que, por qualquer razão que desconheço, salvo serem ambas mulheres que falam de Lisboa e de pessoas coloco no mesmo cesto de qualidade e grandeza.

Infelizmente, nem uma nem outra são autoras tão conhecidas como mereceriam, mas isso faz parte da forma como este País trata os seus escritores, não lhes dando o destaque devido, a menos que, como o Saramago, sejam laureados a alto nível, que aí seria demais não falar deles.

Serviram as palavras anteriores para dizer que nos anos 80 tive o prazer de passar férias em Tróia ao mesmo tempo que o casal Urbano Tavares Rodrigues/Maria Judite de Carvalho.
Tróia sempre foi muito frequentada por escritores, devido a APE ter, na altura, um contrato com a empresa gestora que lhes proporcionava grandes descontos nas estadias. Disso também eu usufrui porque na altura vivia com o Virgílio, também escritor. Claro que agora na era do Belmiro de Azevedo essas mordomias terão acabado certamente, porque transformou aquele espaço num resort de luxo.

Uma noite ao irmos jantar ao restaurante, encontrámos já sentados o Urbano e a Judite que gentilmente nos convidaram para sentar e comermos todos juntos. O Virgílio a dado passo disse á Maria Judite que eu era uma admiradora sua. Fiquei um bocado corada e intimidada, embora de imediato já tivesse notado que a senhora que á minha frente se sentava, era alguém despretensioso que passaria por uma esposa burguesa apenas dona de casa, se eu não conhecesse a sua obra.

Mulher gentil e discreta, de poucas palavras, contrastando fortemente com as suas personagens que eram povoadas de grandes revoltas, frustrações, em suma, sentimentos negativos trazidos pela idade e vidas infelizes, não guardo na memória a nossa conversa, que, creio terá tratado de coisas bastante comuns, onde nunca aflorou o mal que já a minava, um cancro, que em 1998 acabou por derrotá-la. Mas o seu ar calmo, o lembrar-me permanentemente das palavras escritas, fizeram ficar empolgada pelo encontro, onde, o Urbano falou mais, como sempre, no seu estilo melado, que lhe valeu em certos meios a alcunha do “lésbico”, por adorar fazer a corte ás alunas da faculdade, o que contrastava com a sua forma quase afeminada de se exprimir.

Recordo igualmente as tardes na piscina, onde soube que o Urbano teria sido campeão de natação, o que comprovei ao vê-lo atravessar em crowl com uma rapidez de fazer inveja a qualquer jovem, a piscina olímpica num abrir e fechar de olhos.

Teresa David-foto retirada da net

segunda-feira, agosto 04, 2008



O POETA E A ACTRIZ


Ao ver no Biography Channel uma entrevista com a Eunice Munoz não pude deixar de me lembrar das vezes que com ela estive, ou nos bastidores do Teatro Nacional D. Maria II ou em Almada quando visitava o Teatro.
O meu companheiro foi muito mais próximo dela do que eu que me limitei a fortuitas conversas de banalidades e particularmente de filhos, assunto recorrente na sua conversa.
Mas sempre senti a sensação que era uma actriz 24 horas por dia, compondo uma personagem a cada momento.
No entanto, falo aqui dela mais por me ter lembrado do seu marido António Barahona, poeta do grupo do café Gelo, a par do Cesariny, António Maria Lisboa, Raul Leal, Herberto Hélder, e tantos outros entre os quais o pai do meu filho. Conheci-o pessoalmente mas nunca troquei uma palavra com ele, talvez por me sentir intimidada com o seu aspecto reservado ou porque não saberia do que haveria de falar. Daí ter estado sentada a seu lado algumas vezes na tertúlia do Largo da Misericórdia, ouvindo os outros sem nada dizer.
Conheço a obra dele e gosto particularmente do poema que fez dedicado á sua mulher da altura, a Eunice, que transcrevo para ajuizarem do seu talento e qualidade.
Curiosamente o grupo do “Café Gelo” tornou-se pouco conhecido, salvo de uma elite de gente ligada á cultura e jovens universitários que estudam o surrealismo como forma de rebeldia social.
Mas, ao fim ao cabo, o que me levou a pensar escrever este texto foi mais exactamente descrever uma situação curiosa passada após a ida á Índia da Eunice com o Barahona. Ela tinha-se convertido por paixão ao seu amado também ao islamismo, como ele tinha feito em 1975 e vestia-se com trajes indianos, lembro-me de a ver a descer o Chiado dessa forma vestida de mão dada com o companheiro.
Segundo me contava o Virgílio a Eunice quando recebia visitas, pelo menos nessa altura, fazia sempre fondue. Entre um garfo na caçarola e outro, o Virgílio perguntou á Eunice se tinha gostado de estar na Índia. Antes disso, o Barahona tinha acaloradamente falado de tudo o que tinham vivido e conhecido nesse País que era a sua paixão do momento.
A Eunice com aquela expressão contida com que sempre fala numa pequena frase foi eloquente, quando afirmou: bem, as crianças tinham tantas moscas nos olhos e na boca!

Em cima, da esquerda para a direita: Lima de Freitas, Mário Henrique Leiria, Eunice Muñoz, Fernando Alves dos Santos e Mário Cesariny de Vasconcelos. No plano inferior, da esquerda para a direita: Arthur do Cruzeiro Seixas, António Barahona e Diogo Caldeira . Foto de 1978.


PÁSSARO-LYRA DE ANTÓNIO BARAHONA



Contemplo Eunice voltada para a luz olhos nos olhos do Solcomo nenhuma águia até hoje se atreveu





E orquídea de altitude demiurgaigual a Beatriz no diadema aos lábios de perguntas a resposta silencia amorosa e lucilante:
Já não pisas a Terra, filho d'Alighieri





Vastas orbes de Anjos sexuados em amor sob os plátanos de lenda adormecem aos pares no leve vácuo





Ó mulher que eu exorto e me confunde sem teu múrmuro, doce consentimento na paixão reesculpida tantas vezes!





A pedra renasceu do Invisível e o inédito escopro a atacá-la: islâmico destino sem mudança,infalível, dirigido, matemático

O Paraíso na Terra é este quarto:céu de fogo, Rosa branca, Rosa mística,hierarquia de pétalas e espírito,objectos femininos sobre as nuvens





Uma aurora boreal, águas de riso,cotovias nas vergônteas, extenso prado e um luar de serena palidez nas antigas pupilas do piano





Paraíso particular ou ilha estanque furtada d'além mar, onde se abrir alcova de nítido crepúsculo em gravura de tons ácidos em áscua





É meio-dia. São dez cantos. Eis a hora florentina da virtude e o número pitagórico da origem. Recomeço a ascensão, o êxtase inúmero





Ó dilema dos Infernos e Empíreo,duas forças na balança em equilíbrio,o desígnio da Musa é que me vence:completo subirei com gravidade





É meio-dia. São dez cantos. Eis a horada sagrada, maviosa morte álacre e Eunice vindoura tem assentoria Rosa eternamente reflorida





O amor é o rei destes lugares,o Profeta conduz a caravana,os guerreiros de Deus bebem frescura e Buda na corola da Rosa branca





com Cristo, a Mãe Geral e Gabriel,coroam a Eunice e a Beatriz De címbalos adornam as hetairase os poetas da danação meticulosa





Paraíso Prometido, minha casa sobre a rocha edificada, com raizes,a mesa onde me estudo, leio tudo,canavial de livros e poema





É meio-dia. São dez cantos. Eis a hora





Je mange Eunice em atitudes altas,na furiosa água materna, aliterado,entoando o zejel mouro espanhol Ad vitam aeternamos lábios, os gritos, o musgo da voz florido!





Oh beijos medonhos, oh ciclone-júbilo,risos potáveis na aurora fatigada,corpos conversados lado a lado exaustos,cicatrizes, pancadaria de sangue!

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Gosto desta poesia poderosa com a força das convicções e sentidos! Mas gostos não se discutem e nem todos têm esta forma de apreciar as palavras!








TERESA DAVID

segunda-feira, julho 14, 2008



RODIN E CLAUDEL

A viagem mais fatigante que fiz até hoje foi a ida a Paris. Passo a explicar porquê: A ânsia de visitar todas as ruas que pertenciam ao meu imaginário de devota da cultura francesa, nomeadamente dos existencialistas, em particular da Simone de Beauvoir, mais do que o Sartre, que mesmo assim li grande parte da obra, dos surrealistas, com destaque para o Antonin Artaud, a pintura, os museus. Enfim, tentei em 5 dias ver tudo o que um mês não daria para fazer.
Depois de me matar um dia inteiro pelo Louvre, Museu Picasso, Orsay, dirigi-me ao Museu Rodin, levando dentro de mim um certo sofismo em relação a ele, por achar que destruiu completamente em termos humanos a companheira, Camille Claudel, que me parecia ter tido muito mais talento e sensibilidade pelo que já tinha visto em imagens da sua obra.
A obra dele começa logo a evidenciar-se nos jardins bem tratados e com o gigantismo e a força necessárias para não se ficar indiferente.

Dentro do edifício vi a famosa escultura do “beijo”, "as mãos" em posição que mais pareciam um pássaro a levantar voo e o incontornável “pensador”.
Contudo, ao penetrar na sala onde se encontra a obra da Claudel, quase tudo o que tinha visto antes se ofuscou com a dureza de uma verdade nua e crua de algumas das pequenas esculturas que vi, a par com a beleza das formas de outras.
Perante a constatação de tanto talento e sensibilidade confirmei dentro de mim, que, muito possivelmente, se tivesse sentido diminuído perante a obra da companheira e isso o tenha levado a interná-la num hospício até á morte. Mas também pode ser tudo uma enorme aleivosia e ela ter sido alguém realmente com problemas.
Resta a obra e tentar através dela traduzir o que aqueles seres terão sentido na sua passagem neste Mundo.
Falar deste casal fez-me recordar um caso que julgo, em termos de competitividade entre os dois ser idêntico, que será o Almada Negreiros e sua mulher Sarah Afonso, cuja obra me pareceu sempre de enorme qualidade mas ofuscada pelo marido. Mas isso é outra história, pelo que por aqui me quedo.

Teresa David

sexta-feira, julho 04, 2008




























Meu aspecto depois do pesadelo

Cheguei há 8 dias do hospital onde deixei 15 quilos e muito sofrimento espalhado pelas paredes e atmosfera da minha segunda casa, durante a estadia de dois meses, o quarto 621.
Não quero falar deste pesadelo que vivi, que me surgiu do nada e quase me tirou a vida, porque estou em processo de todos os dias tentar reerguer-me mais um pouco.
Daí, já que por agora me estarão vedado os prazeres da praia, do mar, do rebolar na areia, das grandes caminhadas, que tanto amo, deixo aqui a recordação de um lugar onde me senti próxima do Paraíso quando mergulhava naquela água a mais de 20 graus, areia fina, gente afável e generosa, refiro-me a Varadero em Cuba, mas por toda a ilha encontrei igualmente gente humanamente de uma pureza que nunca tinha conhecido em mais nenhuma parte do Mundo que visitei.










Teresa David

domingo, maio 04, 2008



ESCOLHA

Nos meus olhos de Afegã

que entontecem os fracos

Deixo que penetrem os afins

Aos outros tranco as pálpebras

e partem o nariz!

Teresa David

quinta-feira, abril 24, 2008

O MESTRE RELOJOEIRO

Nunca fui pessoa de ter curiosidade pela vida privada de cada um, daí acontecerem-me histórias como a que passo contar, de alguém com quem me cruzo há quase 30 anos e só no ano passado ter sabido alguns pormenores da sua vida, mesmo assim por mero acaso!
Em cinemas, peças de teatro, exposições dos meus quadros, sempre vi o Sr. Jaime, homem de estatura média, cabelo hoje todo branco, olhos vivazes de águia que tudo controlam em redor.
Sabia que ele dever-me-ia conhecer de vista de tantos eventos em que estivéramos em comum, logo, em 2001 na esplanada do Festival de Teatro de Almada, onde sempre o via, habitualmente acompanhado por um senhor da sua geração, o Sr. Jaime tem hoje setenta e tal anos, abordei-o perguntando directamente se não se recordava de mim. É certo que entre 94 e 2000 pouco frequentei os sítios de Almada, porque as pessoas com quem convivia na altura eram todas de Lisboa.
Entre o tímido e reservado balbuciou uma explicação onde dava conta da sua fraca memória, coisa que eu que não acreditei, porque quem é possuidor de um olhar arguto como ele, nunca nada lhe passa despercebido.
No entanto, este foi um despoletar de longas conversas a partir desse dia, uma vez que quando nos cruzávamos no cinema ou teatro, no final do espectáculo, me dava sempre a sua opinião afirmativa quando gostava ou aguerrida quando não. Depressa percebi que as suas opiniões eram irrefutáveis e caso também tivesse gostado limitava-me a confirmá-lo e quando ele disparava simplesmente: detestei, nem tinha a veleidade de o contradizer.
Continuei a encontrá-lo aqui e ali mas também a desconhecer completamente qual era ou teria sido a sua vida profissional ou humana. Tinha a convicção que estaria ligado á Cooperativa Piedense por aí o ter visto aquando das minhas exposições e mais nada.
No ano passado, após mais uma peça de teatro vista em comum, de uma forma contida disse-me que estaria a decorrer na Cooperativa uma sessão de fados e convidou-me a acompanhá-lo. Não sou uma incondicional amante dessa expressão musical, salvo quando as vozes me tocam as fibras sensíveis. Quando me falou que a Luísa Basto também cantaria não hesitei, porque pura e simplesmente a considero a melhor voz portuguesa no feminino e a conheço há muitos anos do Restaurante que possuía no Pragal com o marido, onde cozinhava os jantares e depois ia a correr a casa a dois passos dali para se vestir e vir deliciar-nos com a sua voz.
Antes de entrarmos no Salão onde decorria o evento, o Sr. Jaime mostrou-me a sua loja de relojoaria e ourives, um espaço exíguo onde eram visíveis na parede os relógios anos 30 e outros espalhados pela bancada.
Fiquei espantada porque desconhecia essa sua profissão, mas após pensar um segundo logo me lembrei que realmente nada sabia da sua vida.
Como adoro relógios e senti na sua forma de falar deles a paixão que o povoava, ao ponto de falar como se de filhos se tratasse, perguntei se poderia levar-lhe um relógio de mesa dos anos 20 que tinha o mecanismo completamente escavacado. Perante a sua anuência fiquei de ir num dia próximo visitar a loja com mais pormenor e levar o relógio.
A sessão de fados parecia um anacronismo porque todas as pessoas que habitavam o espaço, em quantidade tão grande que nem tive onde me sentar, me pareciam perdidas no tempo. Fui olhada com aquela curiosidade típica de quem vive em regime de gueto, onde conhece todos os que o rodeiam e qualquer “outsider” se torna alvo de curiosidade.
Pela primeira vez o Sr. Jaime se abriu um pouco comigo ao dizer que tinha passado a vida a trabalhar sem nunca se misturar muito, nem se querer imiscuir nas “tricas” alheias.
Isso fez-me logo ver o que já interiormente tinha pensado, que, apesar, de ele ser homem de uma geração em que devido ás dificuldades, mas também desinteresse, a maior parte dos habitantes desta margem se tinham remetido a uma ignorância em termos estéticos que não ultrapassavam essas sessões populares, tinha avançado culturalmente ao ponto de retirar prazer em ver peças dos maiores dramaturgos mundiais, ou filmes dos grandes realizadores de todos os tempos.
Passado algum tempo levei-lhe o relógio. Encontrei-o de lupa no olho, dobrado sobre um mecanismo de um relógio de pulso antigo. Tinha a sua irmã na loja o que era suficiente para a encher, com quem troquei algumas palavras sobre as bijutarias que faço e outras coisas de mulher, como as dores artríticas que ambas padecemos.
Com o seu ar a raiar o agressivo interrompei-a, pegou no relógio, de entranhas de fora e cheio de verdete, e disse: vou conseguir arranjá-lo!
Fiquei toda contente e perguntei quando o teria de volta.
Esperei mais de um mês até ouvir o seu vibrante tiquetaque, mas entretanto pedi-lhe se me falava um pouco da sua vida, pois me despertava a atenção ver o amor com que tratava os relógios, fazendo algo muito raro já hoje, nestes tempos digitais.
A irmã meteu o nariz para mostrar-me um enorme livro encadernado onde se via a páginas tantas a sua foto e o elogio pelo mérito de artesão na sua arte. Foi nessa altura que me apercebi ser realmente alguém tímido que dispara para manter a sua privacidade incólume, mas acabei por ver em detalhe todo o que lá dizia sobre ele.
Fiquei então a saber que nascera ali na Cova da Piedade, pertencia aos corpos sociais da Cooperativa desde os anos 60, era filho de pai marinheiro, que o levara aos 11 anos para o Alfeite para ir aprendendo as artes do mar. Falou-me de como era aquela zona nos anos 40, nos cavernames dos navios e como não acabara na marinha mas sim aos 12 anos junto dum tio por afinidade que era relojoeiro, com loja na Rua da Madalena para onde se deslocava todos os dias numa vedeta dos marinheiros do Alfeite para poupar o dinheiro do cacilheiro.
Com o tio tudo aprendeu e lhe ficou até hoje essa paixão que ainda acarinha pelos relógios, pelo meio casou e teve dois filhos.
Disse-me displicentemente que já está casado há 50 anos, mas, nunca lhe conheci a mulher, que certamente se deverá ter dedicado toda a vida á casa e criar os filhos.
O cinema desde tenra idade foi um dos seus maiores prazeres, lembrou-me o filme do Cinema Paraíso, com o qual disse se identificar, embora a mim me tivesse vindo a imagem do livro do Romeu Correia dos Bonecos de Luz, mais ajustado geograficamente á história.
Com os olhos grandes tornados enormes nomeou os filmes de acção, as dificuldades iniciais em se adaptar ao cinema neo-realista, ao Ingmar Bergman, a par de outro realizadores mais elaborados, para finalizar afirmando que hoje consegue ver de tudo sem dificuldade.
Se pensarmos que aos 11 anos estava no arsenal do Alfeite, toda a sua caminhada em prol do conhecimento foi notável, o que acabou por afastá-lo um pouco dos seus pares, que não conseguem trocar ideias sobre filmes ou peças de teatro e andar sempre só nos momentos furtivos em que fecha a porta da lojinha e vai mergulhar no mundo encantado da criatividade do qual fala com os olhos húmidos de emoção.

Teresa David-fotos minhas

sexta-feira, abril 04, 2008


VAZIOS (1)

Os longos cabelos
Tapam o buraco vazio
Miolos sugados
Pelos vampiros

Um torpor qualquer
Alojado no corpo
Imobiliza-a

Resta o olhar vago
Que não alcança o infinito

Teresa David

VAZIOS (2)

Fortes braçadas no tinto
Longa dentada no queijo
Da boca saem palavras
Não ouvidas

Nas pernas a tremura
Nos olhos o vitral

A escuridão que desceu
Apagou a luz dos sentidos


Teresa David

segunda-feira, março 31, 2008


AS LÁGRIMAS DE ÁLÁ
(tapeçaria por mim feita alguns anos atrás)

Ao olhar o quadro aqui exibido alguns pensamentos me afloraram a mente, que aqui partilho convosco:

Seja ÁLÁ um deus ou não, Maomé foi um guerreiro conquistador. Homem bom e pai de muitos filhos. Em nome dele algumas atrocidades têm sido cometidas.
Seja Jesus um deus ou não, foi um homem justo, embora implacável, que não deixou descendência, viveu pouco e de forma humilde, tendo sido a sua morte barbara como se conhece. Em seu nome horríveis atrocidades humanas foram cometidas.
Perante isto, questiono-me o porquê da religião, de sermos seguidores de seres abstractos, quando, quanto a mim, bastar-nos-ia tentarmos ao longo da vida nos aperfeiçoarmos e não prejudicarmos os que nos rodeiam, simpatizemos ou não com eles. Afirmo-o convictamente porque foi, é e será, certamente, até aos meus últimos dias, a forma de estar viva, a menos que a razão me abandone ou os demónios me invadam!

Teresa David

domingo, março 23, 2008

foto de Rui Pestana do Funchal


EXEMPLO


Preto no branco
Está feito!

Sem diferença no género
O apetite reparte-se

Na pacatez e sabedoria
Dos que já alcançaram

A serenidade
Teresa David
foto retirada da Net


O GRANDE SALTO

Com as vertigens por companhia
Da montanha saltei

Do fundo do Mar emergi
Respirei

Na terra rastejei
Procurei as peças
Do puzzle que me compunha

Restaurei-me completamente

Todas as agruras ficaram para trás
Afundadas na água
Teresa David
foto retirada da net

LÁ LONGE

Muito ao longe,
Além do que a vista alcança,
Estás tu á minha espera.

Não reconheço feições nem porte.

Talvez humano, quiçá miragem

Mas a certeza que ficarás aí,
Estático, sem pressa, nem ansiedade,
Faz-me sentir segura do reencontro
Teresa David

terça-feira, março 18, 2008






OVELHA NEGRA










Caminham no tapete azul






com formas variadas






Ovelhas mais ou menos alvas






forradas a luz






No seu lento passeio






vão-se unindo






Eis que surge, desgarrada,






uma nuvem negra






a deslizar



na vã esperança


de alcançar o rebanho


Teresa David

DELÍRIOS





Ali, naquele foco de luz,



estou eu,



sentada sobre o barril,



com liquido a sair-me



pelos sonhos



Foi então que nadámos juntos



na areia vermelha do deserto





Teresa David

















quarta-feira, março 12, 2008

Quadro pintado a Pastel pelo meu filho Francisco




EU, BRUXA


Na vassoura montei
com o gato ao pescoço


Mergulhámos até ao dia


onde o gato preto
me levou pela mão



Teresa David




URBANIDADE


Quadrados cerrados
por persianas estanques

O adivinhar de guerra
de corpos entrelaçados

A criança dormindo

O velho ressonando
Alguém que exala o último suspiro
sem ninguém por isso dar


ou simplesmente
uma divisão vazia

Teresa David -Foto retirada da net







OS MEUS FELINOS




Príncipes na altivez do porte




No olhar de comando




Próximos nas lambidelas


recíprocas




Guerreiros na contenda


da soberania do território




Companheiros sempre




Expando neles o olhar


até que o sono me assalta


e consigo repousar




TeresaDavid-fotos dos meus gatos

sexta-feira, março 07, 2008


Ser mãe foi, sem margem de dúvida, algo que me fez sentir mais pessoa. Contudo, apesar dos filhos serem sempre a minha prioridade de vida, nunca desleixei a minha vida de Mulher. Daí, neste Dia Internacional da Mulher, infelizmente, parecer-me ainda ser pertinente o poema que fiz em 1993, a pedido das listas unitárias da Comissão de Trabalhadores do Banco onde trabalhava, uma vez que uma franja alargada de mulheres ainda têm este tipo de vida:


VIDA DE MULHER

Ser mulher é ser guerreira
numa luta sem igual
temos trabalho, filhos, homem
e vida profissional


Neste Mundo revirado
aspirar a uma carreira
é batalha formidável
é desgaste e canseira


Mete fralda, olha o lume,
escreve ao computador,
olha o relógio e já é tarde
não há tempo pr'o amor!


É então que acontece
outra mulher aparecer
mais folgada e sensual
e sem nada que fazer


E acabamos traídas
tristes, cansadas, feridas


Mas ao vermos nossos filhos,
com as tripas reviradas
avançamos pr'o combate


Antes quebrar que torcer
pois a força da Mulher
é a última a morrer


Teresa David-1993 foto minha aos 25 anos com o meu filho mais velho apenas com alguns dias

sexta-feira, fevereiro 29, 2008


CAMACHO COSTA

Ao ver toda a semana na SIC, o anúncio de um programa a ir para o ar no dia que fará 5 anos sobre a morte do Camacho Costa, veio-me á memória, algumas vezes que com ele me cruzei, bem como, alguns espectáculos onde entrou que me marcaram por razões diversas.


A primeira vez que o vi pisar as tábuas, era eu ainda adolescente, foi ao lado do Raul Solnado, no “Vamos Contar Mentiras”, comédia hilariante, embora prefira teatro dramático.


Muitos anos mais tarde, mais exactamente em 2001, revi-o no palco a trabalhar junto dos Artistas Unidos, companhia que muito prezo, que tem ao leme um dos homens de teatro que mais admiro, o Jorge Silva Melo, que aprendi a gostar do seu trabalho desde o tempo que fazia parte, com o Luís Miguel Cintra, do teatro da Cornucópia. Estava em cena –
OS IRMÃOS GEBOERS de Arne Sierens, encenado pelo Jorge Silva Melo. Aí era patente que o Camacho, conhecido mais como comediante, era também um óptimo actor dramático.


Algumas vezes estive com ele em bares de Lisboa, mas nunca trocámos palavra, até um dia, em que fui com o meu filho ver o Bolero, salvo erro estávamos em 2002, encenado pelo José Carretas ao Teatro Villaret.


Como gosto sempre de ir cedo para todo o lado, e, de preferência jantar fora, quando vou a algum espectáculo, entrei num restaurante logo ao virar da esquina, que bem conhecia, pois, trabalhava nessa altura na Fontes Pereira de Melo, o que me levara a já ter comido em quase todos os restaurantes da zona.


Mal entrei, abriu-se-me a boca de espanto ao deparar com todo o elenco da peça que ia ver a jantar. Entre os comensais estava uma actriz com quem privara bastante nos anos 70, e que não via desde essa altura, o que provocou um abraço efusivo entre as duas e um começar de relembrar de momentos antigos bem vividos e inesquecíveis.


Como ela nada sabia da minha vida desde essa altura fiz uma síntese de todos esses anos, nomeando de quem era filho o adolescente que me acompanhava.
Foi então que as antenas do Camacho Costa e do José Raposo, que também faziam parte do elenco se viraram do bitoque que tinham no prato, para mim, e, quase em uníssono, disseram: Ah mas conheci muito bem o seu marido!
Conversa puxa conversa, ajudada pelo José Carretas que entretanto aparecera, e, esse, sim, conhecia há bastante tempo, acabei por me sentar junto deles.


Constatei que o Camacho, além de bom actor, também era homem de grande cultura, bastante interessado na divulgação de obras de autores que gostava e que estavam por estrear, além de ser daquela simpatia natural, impossível de forjar. Daí, quando eu disse possuir em minha casa um inédito do pai do meu filho, os olhos lhe terem brilhado e dito: - Ah! Gostaria tanto de levar isso á cena!
Respondi: - Por mim não tenho problema nenhum!
Combinei, então passar pelo Teatro noutro dia para lhe entregar uma cópia do original.


Entretanto a hora do espectáculo chegou. Estava muito curiosa, porque por volta dos 20 anos, ainda tinha apanhado o Bolero com os resquícios do carisma que o tinham tornado o Bar de Alterne de eleição dos escritores e poetas. Com eles passara muitas noites de insónia, a ouvir as histórias delirantes dos criadores, a olhar as mulheres, a maior parte já prestes a murchar, e, particularmente, a ver a responsável pela casa, já com os seus sessenta e tal anos, que tinha uma enorme cumplicidade com todos os clientes, mas que estava sempre de olho nas suas meninas.
Contaram-me que nos anos 50 e 60, no final da noite, depois do convívio da palavra, de ouvir a orquestra de cegos, todos subiam ao andar de cima para comer peixe fresco, antes do regresso a casa.


Para mim, a recordação que se me colou á pele foi de uma mulher de seios agigantados, formas voluptuosas, cabelos negros, que numa dessas noites, em que viu que eu estava esgotada, com os olhos a entrelaçar-se no nariz, me encostou ao seu colo, proporcionando-me um sono aconchegado e maternal.


Mas voltando ao outro Bolero, gostei da peça, embora não tenha reconhecido o espaço que habitara.
No final, como me tinham convidado ao jantar para ir aos bastidores, ainda estive lá com o meu filho mais de uma hora em conversa amena com os actores e encenador.


Resta dizer que fiz as cópias da peça inédita, mas por um motivo ou outro, atrasei-me a ir ao teatro, a peça saiu de cena, o Camacho entrou na derradeira espiral de trabalho em TV, que creio, só assim, fez com que passasse a ser um actor conhecido por todos, pois, sem dúvida, neste País um actor para ser reconhecido tem de passar pelo pequeno ecrã.
Três meses antes de falecer ao ouvi-lo ser entrevistado, onde evidenciava uma rouquidão enorme, um arrepio percorreu-me a espinha, levando-me ao ano de 1994, em que o Pai do meu filho também enrouqueceu. Três meses depois faleceu de cancro pulmonar, tal e qual como aconteceu ao Camacho Costa.


TERESA DAVID-fotos recolhidas na net