segunda-feira, março 20, 2006



O VIÚVO

Nas minhas deambulações nocturnas ao longo de quase toda a vida muitos sítios percorri, e de entre eles, nos finais dos anos 90 escolhi nas Docas o Queen's, ás terças feiras, por ser Lady's night, logo poder beber a meu bel-prazer á borla, pelo simples facto de ser mulher. Como o dinheiro nunca abundou na minha bolsa esse privilégio dava-me jeito.

Numa dessas 3as feiras, lá rumei Queen's adentro, abandonei num canto a mala e o casaco, sempre poupava no bengaleiro, e todo o mulherio fazia o mesmo, e atirei-me, como sempre, para o meio da pista para dançar, comigo própria, de preferência.

Ora, nesse dia específico de 1999, apercebi-me que uma roda de homens jovens me tinha rodeado, apesar das miúdas giras e muito mais novas que por lá proliferavam. Mas talvez pela forma como danço, com o diabo no corpo, como costumo dizer por graça, assim aconteceu.

Dois deles ofereceram-se para irem ao bar apinhado de gente buscar-me uma bebida, e embora um pouco desconfiada, entreguei-lhes o meu gratuito copo nas mãos. Voltaram com um Gin que bebi de um trago.

Como um se destacara, talvez pelo seu olhar mortiço, pela altura desmesurada do seu corpo, dei-lhe mais atenção, e acabei por me encostar ao balcão para trocarmos palavras gritadas ao ouvido. Soube então que a sua expressão triste se devia a ter uma companheira mais velha, muito mais velha mesmo, ou seja, deveria ser da minha idade, com um cancro da mama dos que matam.

Pensei: - Este está a dar-me uma "cantada" para molhar o bico, e limitei-me a abanar a cabeça com um olhar falsamente solidário.

Contudo, a manhã tapou a noite, e ao sair de lá com dificuldade em encarar a luz, qual morcego, trocámos números de telefone.

Passaram quinze dias, e já aquela noite tinha passado para a zona do esquecimento, quando o meu telemóvel tocou, e uma voz desconhecida me interpelou: Lembraste de mim? Do Queen's?

Ah! - respondi - eras o rapaz que tinha a mulher muito doente!

Sim, sou eu ...- e rebentou num soluçar de perder a respiração - ela já morreu há dois dias, queres vir jantar a minha casa pois sinto-me muito só?

Fiquei queda e muda, mas como achei que seria quebrar a minha natureza não dar um pouco de calor humano e simpatia a alguém que, ou era um grande mentiroso, ou sádico por inventar tal macabra história para se encontrar comigo, aquiesci, e no Sábado seguinte rumei até casa dele.

Ao entrar deparei com uma sala cheia de trabalhos em vidro Tifanny que me chamaram a atenção, e logo perguntei: Que bonito! Compraste?

Não, era ela que os fazia, também era artista como tu!

Era um bom cozinheiro e tinha feito um franco de fricassé, que acompanhámos com um bom tinto, e conversa agradável.

O jantar acabou e ele pediu-me para ir até ao quarto. Ao entrar deparei com uma parede cheia de pregos de onde pendiam inúmeros colares. No chão vários pares de sapatos por estrear. Numa prateleira ao lado da cama jaziam vários perfumes, por abrir, em frascos de vidro colorido com formas exóticas.

Disse-me: - Tu deves calçar o mesmo número que ela, se quiseres aproveita os sapatos que estão completamente novos, os perfumes, e os adornos.

Nunca me habituei a que me dessem presentes, pois sempre fui mais de dar do que receber, e de qualquer forma aquilo soava-me a macabro, ao fim ao cabo estava a ser a herdeira de uma morta desconhecida. Mas pensei: - Antes para mim que aprecio estas coisas, do que ir para o lixo, e escolhi as que mais me agradavam.

Tudo isto me parecia estranho e não deixava de me perguntar: Porquê eu? Ele é um rapaz bonito, porquê eu?

E de repente descobri duma forma abrupta quando o meu olhar circulou por toda a superfície do quarto. Sobre a mesa de cabeceira jazia a foto dela, mais exactamente da sua cara em grande plano. Vi os meus olhos, as minhas maçãs do rosto, os meus lábios, a cor do meu cabelo. Eu era uma completa sósia dela, e então percebi que o que ele queria mesmo era continuar a ter a mesma mulher através da minha imagem.

Perplexa fixei-o e nada disse. Tudo aquilo era demasiado estranho para eu continuar ali. Agradeci com um fugaz beijo na cara o óptimo jantar que fizera para mim, os presentes, peguei na trouxa, e desapareci até hoje.

Teresa David

2 comentários:

Raquel Vasconcelos disse...

Quando dói muito... a cobardia dita as regras...

Noélia de Santa Rosa disse...

Não é cobardia, é a recusa pura e simples do acabar do amor que se nutre por alguém... quando dói muito recusa-se a perda!
Recusa-se de tal forma que se pode atingir o suicídio ou escolhem-se caminhos entre a fantasia e a demencia!

Gostei de passar por aqui e não o podia fazer sem deixar uma pegada!

Beijokinhices e coiso