sábado, maio 26, 2007



Embora tenha mais umas histórias escritas, confesso que as minhas antenas já estão a voltarem-se a toda a velocidade para Veneza onde estarei pela primeira vez daqui a dois dias. Logo, envio um abraço amigo a todos os que por aqui passarem. Quando voltar a 14 de Junho, certamente trarei comigo muitas imagens e historietas da viagem para contar. Então, partilhá-las-ei com todos.

Teresa David-foto retirada da Net (aguardem pelas minhas!!!!)

domingo, maio 13, 2007


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Sem dúvida que o Manel foi um dos homens com quem mais prazer tive de privar. A sua voz calma, o porte de pessoa bem-educada, embora danado para a pancadaria quando novo, como soube através de histórias contadas na primeira pessoa, contador de histórias ele era, quer fossem relatos de vida ou anedotas que contava com particular bom gosto.
Como o meu local previlegiado de convívio foi, é e creio que sempre será, á volta de uma mesa, ele tornou-se uma companhia dilecta.
Nos últimos anos de vida veio viver para a Margem Sul, mais concretamente para a Arrentela perto do Seixal, mas como homem habituado ao convívio com os amigos, fosse a beber o seu vinho tinto acompanhado de bom queijo, marisco na Solmar em alturas mais abonadas, adorava percebes acompanhados com espumante, hábito que me passou e que conservo até hoje, as tardes na Trindade com o Adriano Correia de Oliveira, que precocemente nos abandonou, a par do seu grande amigo, o Carlos de Oliveira, escritor um pouco esquecido infelizmente, autor do memorável Finisterra. Restaram-lhe o BB (Batista Bastos), alguns outros, e o Virgílio Martinho, meu marido, pai do meu filho, que já tenho mencionado em anteriores histórias. Dado viver comigo em Almada, acabou por ser o seu motivo para se escapulir de casa onde se sentia isolado e aprisionado. A mulher, de nome Hermínia, boa mulher, exímia cozinheira, que conheci quando ainda trabalhava num pequeno restaurante do Bairro Alto, onde ele a ia catrapiscar e comer os seus petiscos, quando dava pela sua falta, falava de imediato para minha casa por ser o sítio mais fácil de o localizar.
Dum almoço em minha casa, que começou á uma da tarde, onde éramos um grupo de amigos, restou-me a dedicatória que me fez no seu livro de poesia completa que aqui partilho convosco. Nesse dia todos foram debandando e restámos nós os dois, uma taça de cerejas, uma tábua de queijos e uma garrafa de vinho alentejano, que deram para acompanhar muitas histórias contadas e ouvidas até á uma da manhã!
Embora não seja pessoa que goste de parar no tempo e viver do passado, sinto, por vezes, nostalgia desses convívios que ainda duraram bastantes anos.
Costuma-se dizer que homem pequenino ou malandro ou dançarino. No caso dele que era homem atarracado, mas com uma visível força física, poder-se-iam aplicar as duas palavras. A primeira por ter sido um grande apreciador de mulheres, embora as tratasse, pelo menos comigo assim foi, com enorme respeito. Dançarino, porque rondava já os oitenta anos e numa ida ao Ritz Clube, em sequência a jantar bem regado, dançámos até eu, com pouco mais de trinta anos ficar exausta, enquanto ele permanecia fresco que nem uma alface!
Descobri na net a última entrevista que deu antes de morrer, na RTP2 ao Carlos Cruz. Uma verdadeira pérola de ver e particularmente ouvir. No topo encontrarão o respectivo link.
O seu falar português era muito único tanto na forma como no conteúdo. Em tempos de arrepio, quando na rua andamos e ouvimos aberrações linguísticas, permanecer-me-á sempre na memória uma frase que me disse, ao encontrar-me num acontecimento cultural em Almada, quando apareci toda vestida de negro e com uma boina galega branca colocada estrategicamente de lado:
A menina tem sempre um jeitinho especial de chamar a atenção da gente!
Não é mesmo bom de ouvir?
Teresa David

quarta-feira, maio 02, 2007



PEDAGOGIA

Sou aluna das ervas e frequento

O curso nocturno do amor

Folheando o cão que lambe o gato

Sem saber que faz de professor.

NATÁLIA CORREIA

A NATÁLIA

A primeira vez que a vi foi em 1969. Tinha 46 anos, mas uma beleza e uma majestade que a tornavam o centro das atenções de uma forma incontornável. Os seus enormes olhos pareciam devorar-nos, fulminar-nos, ou envolver-nos e transportarem-nos para o seu colo de alabastro.

Mirei-a com o desconhecimento de quem era, o que foi logo visível pelo Fernando Ribeiro de Mello, sentado ao meu lado, editor de obras importantes nessa altura, pela transgressão que representavam no regime anterior, que logo me esclareceu do seu nome. No dia seguinte ofereceu-me um livro de nome "O Vinho e a Lira" que tinha sido editado por ele, da autoria da Natália. Para ser verdadeira direi que na altura não apreciei devidamente a sua poesia. Mas eu era ainda tão menina!

Alguns anos passaram, cresci, a vida mudou-me um pouco, a vontade de viver intensamente a noite que sempre amara, permaneceu. Daí em 1975 ter começado a frequentar o Botequim, Piano-Bar onde amiúde tocava o António Vitorino de Almeida. Ele adorava a Natália, respeitava-a, escrevia-lhe longas cartas de Viena, o que testemunhei, quando para casa dele fui nesse mesmo ano durante um mês. Ela tratava-o maternalmente. apesar da sua absoluta rejeição em ter sido mãe.

A pouco e pouco comecei timidamente, mas com firmeza, a com ela dialogar. Privilegiou-me com a sua presença em frente a frente de diálogo de sentires e filosofias de vida, de cada vez que eu a visitava naquela sua segunda casa. Fazia sempre uma entrada triunfal, depois de todos os clientes habituais já terem chegado, seguida do seu séquito, onde se destacava o Dórdio Guimarães, que viria a ser o seu último marido, tendo-se-lhe mantido fiel na sua devoção, desde adolescente, até á morte da companheira. Esperou que o Sr. Machado, marido da Natália nessa época, que eu via habitualmente junto ao balcão, sempre elegantemente vestido, diria mesmo de ponto em branco, com os seus cabelos alvos, muito bem penteados, rondando os 70 anos, a quem a Natália tratava com deferência e atenção, falecesse, para finalmente sair da sua sombra para ficar ao seu lado, embora sempre com um perfil de subserviência que nunca perdeu até ao fim. Acabou por viver sempre á sombra de alguém, primeiro do pai realizador de cinema, a seguir da mulher, que amou tão incondicionalmente, que após a sua morte pouco tempo lhe sobreviveu.

Havia um pormenor que achava estranho. A Natália pedia sempre uma coca-cola ao empregado do bar, mas ao cabo da segunda ou terceira estava excitadíssima e a sua voz trovejava pela sala. Sempre pensei que era da cafeína, até ao dia que estando no balcão a pedir qualquer coisa me apercebi que o Barman estava a preparar a coca-cola para ela, mas bem temperada de Whisky!

Como tive por marido, a partir de 1979, um grande amigo dela, despertei-lhe mais atenção. Rapidamente ficámos bastante próximas ao descobrirmos a afinidade de mulheres nocturnas que comungávamos, a par da paixão hedonística pela comida, bebida e outros prazeres primários da vida. Como tão bem dizia: A Poesia é para comer!

Sempre desconfiei das pessoas que não honram as suas necessidades primárias, como a comida, ou os prazeres do corpo, sublimando-as com voos etéreos em direcção ao vazio, frustração, depressão ou negação!

Encontrámo-nos em tascas para comer, em night-clubs mal afamados, e rimo-nos com cumplicidade disso!

A deputada, poeta, mulher por inteiro, amante incondicional da vida e do amor para além dos limites, rejeitou a maternidade por achar não ter tempo a perder com isso.

Lembro-me de uma noite de passagem de Ano nos anos 80, lhe ter dito: Já só falta um minuto! E ela respondeu: Um minuto é muito tempo, dá para fazer uma horrorosa criancinha!

O meu marido contou-me muitas histórias de vivências com a Natália, anteriores ao meu nascimento, mas a que melhor me recordo foi do famoso jantar-banquete, com viveres-iguarias vindas do hotel de propriedade do Sr. Machado, com o qual a Natália presenteou a visita a sua casa de Henry Miller. Segundo ele, o famoso autor, na altura já a rondar os 80 anos, foi de uma antipatia extrema. Saíu logo a seguir ao jantar, recusando-se a dialogar com quem quer que fosse.

Mas o que realmente me encheu de orgulho nesses mais de 20 anos que com ela privei, foi uma conversa, quase testamento que teve comigo um mês antes de morrer, onde me disse: A Menina é como eu, uma libertária. Sinto-me tranquila que quando morrer sei que deixei um legado humano dos meus ideais de vida.

Ela casou quatro vezes, bati-a, ao casar cinco! No entanto, de cada vez que a visitava com um novo marido, como mulher acima de quaisquer juizos de valores pseudo-morais, ao apresentá-lo e dizer: Este é o meu novo marido, gentilmente cumprimentava-o e começava a dialogar comigo como era usual, até ir para outro grupo de pessoas amigas.

Tem sido difícil manter-me fiel ao caminho que defini como prioridade de vida. Ao contrário dela, escolhi, de há dez anos para cá, ficar finalmente só, rejeitei hipotéticas cortes, que modéstia á parte, tive e poderia ainda ter, mas prefiro deliciar-me com o prazer, sempre o prazer como mola impulsionadora, de estar comigo, aproveitar os momentos de paz, e por vezes partilhar-me com aqueles que sinto poder dar algo de mim.

O Ary dos Santos, seu grande amigo e admirador confesso fez-lhe o seguinte poema:

RETRATO DE NATÁLIA

Hierática cromática socrática

passas branca de neve pela sala

nebulosa da pele via láctea

do único percurso que nos falta.

No teu andar há ventres há tecidos

de leve lã circuitos do brocado

duma seda tecida na manhã

dos raios dos teus olhos deslumbrados.

Nos teus quadris há cisnes há pescoços

de virgens degoladas há indícios

do alabastro quente dos teus ossos

iluminando claros precipícios.

É isso. Uma vestal iluminada

uma deusa rangendo uma secreta

porta barroca aberta para o nada

que é o dossel da cama do poeta.

Ali deitei crianças animais

gemidos e maçãs vagidos e atletas

pois que amas as coisas naturais

com tua carne impúbere e erecta.

Porém tu acalentas tu alentas

nossa senhora lenta mãe do escândalo

ave de carne lírio de placenta

com aroma de nardos e de sândalo.

Desinfectante e amante eis que transformas

em teus olhos de cânfora as orgias

e o teu corpo ânfora é a forma

em que a lira da noite vaza o dia.

José Carlos Ary dos Santos