
PEDAGOGIA
Sou aluna das ervas e frequento
O curso nocturno do amor
Folheando o cão que lambe o gato
Sem saber que faz de professor.
NATÁLIA CORREIA
A NATÁLIA
A primeira vez que a vi foi em 1969. Tinha 46 anos, mas uma beleza e uma majestade que a tornavam o centro das atenções de uma forma incontornável. Os seus enormes olhos pareciam devorar-nos, fulminar-nos, ou envolver-nos e transportarem-nos para o seu colo de alabastro.
Mirei-a com o desconhecimento de quem era, o que foi logo visível pelo Fernando Ribeiro de Mello, sentado ao meu lado, editor de obras importantes nessa altura, pela transgressão que representavam no regime anterior, que logo me esclareceu do seu nome. No dia seguinte ofereceu-me um livro de nome "O Vinho e a Lira" que tinha sido editado por ele, da autoria da Natália. Para ser verdadeira direi que na altura não apreciei devidamente a sua poesia. Mas eu era ainda tão menina!
Alguns anos passaram, cresci, a vida mudou-me um pouco, a vontade de viver intensamente a noite que sempre amara, permaneceu. Daí em 1975 ter começado a frequentar o Botequim, Piano-Bar onde amiúde tocava o António Vitorino de Almeida. Ele adorava a Natália, respeitava-a, escrevia-lhe longas cartas de Viena, o que testemunhei, quando para casa dele fui nesse mesmo ano durante um mês. Ela tratava-o maternalmente. apesar da sua absoluta rejeição em ter sido mãe.
A pouco e pouco comecei timidamente, mas com firmeza, a com ela dialogar. Privilegiou-me com a sua presença em frente a frente de diálogo de sentires e filosofias de vida, de cada vez que eu a visitava naquela sua segunda casa. Fazia sempre uma entrada triunfal, depois de todos os clientes habituais já terem chegado, seguida do seu séquito, onde se destacava o Dórdio Guimarães, que viria a ser o seu último marido, tendo-se-lhe mantido fiel na sua devoção, desde adolescente, até á morte da companheira. Esperou que o Sr. Machado, marido da Natália nessa época, que eu via habitualmente junto ao balcão, sempre elegantemente vestido, diria mesmo de ponto em branco, com os seus cabelos alvos, muito bem penteados, rondando os 70 anos, a quem a Natália tratava com deferência e atenção, falecesse, para finalmente sair da sua sombra para ficar ao seu lado, embora sempre com um perfil de subserviência que nunca perdeu até ao fim. Acabou por viver sempre á sombra de alguém, primeiro do pai realizador de cinema, a seguir da mulher, que amou tão incondicionalmente, que após a sua morte pouco tempo lhe sobreviveu.
Havia um pormenor que achava estranho. A Natália pedia sempre uma coca-cola ao empregado do bar, mas ao cabo da segunda ou terceira estava excitadíssima e a sua voz trovejava pela sala. Sempre pensei que era da cafeína, até ao dia que estando no balcão a pedir qualquer coisa me apercebi que o Barman estava a preparar a coca-cola para ela, mas bem temperada de Whisky!
Como tive por marido, a partir de 1979, um grande amigo dela, despertei-lhe mais atenção. Rapidamente ficámos bastante próximas ao descobrirmos a afinidade de mulheres nocturnas que comungávamos, a par da paixão hedonística pela comida, bebida e outros prazeres primários da vida. Como tão bem dizia: A Poesia é para comer!
Sempre desconfiei das pessoas que não honram as suas necessidades primárias, como a comida, ou os prazeres do corpo, sublimando-as com voos etéreos em direcção ao vazio, frustração, depressão ou negação!
Encontrámo-nos em tascas para comer, em night-clubs mal afamados, e rimo-nos com cumplicidade disso!
A deputada, poeta, mulher por inteiro, amante incondicional da vida e do amor para além dos limites, rejeitou a maternidade por achar não ter tempo a perder com isso.
Lembro-me de uma noite de passagem de Ano nos anos 80, lhe ter dito: Já só falta um minuto! E ela respondeu: Um minuto é muito tempo, dá para fazer uma horrorosa criancinha!
O meu marido contou-me muitas histórias de vivências com a Natália, anteriores ao meu nascimento, mas a que melhor me recordo foi do famoso jantar-banquete, com viveres-iguarias vindas do hotel de propriedade do Sr. Machado, com o qual a Natália presenteou a visita a sua casa de Henry Miller. Segundo ele, o famoso autor, na altura já a rondar os 80 anos, foi de uma antipatia extrema. Saíu logo a seguir ao jantar, recusando-se a dialogar com quem quer que fosse.
Mas o que realmente me encheu de orgulho nesses mais de 20 anos que com ela privei, foi uma conversa, quase testamento que teve comigo um mês antes de morrer, onde me disse: A Menina é como eu, uma libertária. Sinto-me tranquila que quando morrer sei que deixei um legado humano dos meus ideais de vida.
Ela casou quatro vezes, bati-a, ao casar cinco! No entanto, de cada vez que a visitava com um novo marido, como mulher acima de quaisquer juizos de valores pseudo-morais, ao apresentá-lo e dizer: Este é o meu novo marido, gentilmente cumprimentava-o e começava a dialogar comigo como era usual, até ir para outro grupo de pessoas amigas.
Tem sido difícil manter-me fiel ao caminho que defini como prioridade de vida. Ao contrário dela, escolhi, de há dez anos para cá, ficar finalmente só, rejeitei hipotéticas cortes, que modéstia á parte, tive e poderia ainda ter, mas prefiro deliciar-me com o prazer, sempre o prazer como mola impulsionadora, de estar comigo, aproveitar os momentos de paz, e por vezes partilhar-me com aqueles que sinto poder dar algo de mim.
O Ary dos Santos, seu grande amigo e admirador confesso fez-lhe o seguinte poema:
RETRATO DE NATÁLIA
Hierática cromática socrática
passas branca de neve pela sala
nebulosa da pele via láctea
do único percurso que nos falta.
No teu andar há ventres há tecidos
de leve lã circuitos do brocado
duma seda tecida na manhã
dos raios dos teus olhos deslumbrados.
Nos teus quadris há cisnes há pescoços
de virgens degoladas há indícios
do alabastro quente dos teus ossos
iluminando claros precipícios.
É isso. Uma vestal iluminada
uma deusa rangendo uma secreta
porta barroca aberta para o nada
que é o dossel da cama do poeta.
Ali deitei crianças animais
gemidos e maçãs vagidos e atletas
pois que amas as coisas naturais
com tua carne impúbere e erecta.
Porém tu acalentas tu alentas
nossa senhora lenta mãe do escândalo
ave de carne lírio de placenta
com aroma de nardos e de sândalo.
Desinfectante e amante eis que transformas
em teus olhos de cânfora as orgias
e o teu corpo ânfora é a forma
em que a lira da noite vaza o dia.
José Carlos Ary dos Santos
29 comentários:
O que os "outros" pensam pouco ou nada me interessa! A Natália era uma mulher fantástica!Ouvia-a várias vezes, no meu tempo de estudante universitária, e a última "conversa" com ela foi no ano de 1990 na Casa de Serralves.Nunca esquecerei as "madames" que foram abandonando a sala enquanto dissertávamos sobre o amor e o prazer...Hedonista?Libertina?Poeta até à medula e uma Mulher que honra a nossa condição de iguais( pelo menos deveríamos ser...)!!!
Mais um belo testemunho, de uma mulher indomável e admirável... com quem só falei uma vez, com o objectivo de a entrevistar.
A Natália adiou a entrevista que eu adorava ter feito... para se despedir poucos meses depois, de todos nós.
Conheci a Natália no Chiado, ainda criança.
Apesar de extremamente bela não era uma simpatia de pessoa, achava-a demasiado vaidosa. O meu pai adorava-a... por ela ser completamente diferente das outras mulheres que conhecia...
Como poeta, é fantástica.
Nunca conversei com a Natália, excepto duas ou três vezes em encontros de circunsyância no Festival de Teatro de Almada, mas pela Leitura sos seus versos, este retrato corresponde de muito perto à ideia que fazia dela.
Em cntrapartida conheci o Dórdio em garoto (eu um pouco mais velho), ambos durante duas semanas na mesma sala de um hospital.
O mundo é pequeno, não é?
A c´rónica est´
a óptima
beijinho
PS: Tenho novo poema
Uma mulher inteira e grande. De poemas, de sensações. Uma beleza teres dado testemunho pessoal da sua vívida vida. Só pode ser um previlégio ler-te, livre como ela te profetizou. Beijinhos, linda!
Natália Correia smp foi, para mim k com ela não privei e só aconheci na distância k a escrita e a televisão ipõem, o símboloda MUHER. Assim memso. Com maiúsculas. De outras poderei dizer ommesmo com a mesma verdade sendo embora diferentes temperamentos e modos de estar na vida.
Nataália foi/é, uma força viva da Mater k ela tanto cantou e como filha dilecta dessa mãe, génio e temperamento forte tudo lhe seria smp permitido pq a natureza qnd se levanta, seja em doçura ou fúria, hunca passa despercebida.
Nem aos "humanos" k vivem vidas eternamente hibernadas.
Obrigada por + esta partilha amiga.
P.S - amigos comuns muitas vezes me instaram a ir ao Botequim smp k ia a Lxª, pois achavam k a Natália gostaria de mim...
Desculpa as gralhas - há mais mas corrijo só esta: MULHER!
É k ainda não almocei e já são 14h47
Bjs
Luz e paz
Natália. Excelente escolha. Grande mulher e poetisa.
A tarde caiu, o sol partiu
No do vago que resta do dia
A tua presença é luz que me aquece
Coração a navegar, inconstância
Nas águas puras desta lagoa
Uma hortensia murmura um rumor
Um milhafre o amor apregoa...
Bom resto de semana...
Doce beijo
"A poesia é para comer"
Nunca a conheci, mas arriscaria a dizer que tudo era e continua a ser poesia, daí a sua força.
Um beijo e um sorriso
E aqui fica mais uma contribuição interessante para o perfil da Natália Correia.
Que saudades de Natália Correia e da sua voz de trovão. Que privilégio teres conhecido a Natália, ainda me lembro das suas intervenções na televisão sobre política, sobre os direitos das mulheres e sobre a sociedade em geral.
Morreu antes de tempo e foi indecente que os portugueses não se lembrassem dela aquando daquele programa dos Grandes Portugueses... mas se calhar foi bom não misturá-la com salazares e afonsos henriques, Natália Correia é superior a tudo isso... talvez os seus excessos tivessem contribuído para a sua morte antecipada... tal como Ary, ambos deveriam cá estar ainda ... e que falta fazem!!!
Beijinhos!!!
Gosto sempre de passar por aqui!
Vou sempre um bocadinho mais rico com o que leio.
Um grande Domingo e até breve!
SE DEUS QUISER
Realmente tens muita coisa interessante para contar. E que bem o fazes.
OLA TERESA
TU PELOS VISTOS CONHECESTE DE PERTO OS MAIORES VULTOS DA NOSSA VIDA ARTÍSTICA E LITERÁRIA DA 2ª METADE DO SEC. XX!!!
NATÁLIA - UMA DAS MAIORES SENÃO A MAIOR DESSA ÉPOCA - UM EXEMPLO DE FORÇA,SENSIBILIDADE, INTELIGENCIA COERENCIA E ALEGRIA OU MELHOR FÚRIA DE VIVER!
CLARO Q TU E ELA SÓ SE PODIAM ENTENDER BEM... AINDA BEM Q AINDA DISFRUTARAM DE TÃO BONS E FRUTUOSOS MOMENTOS JUNTAS!
TB A TUA ESCRITA NÃO DESMERECE ANTES FAZ RESSALTAR AS QUALIDADES DA NATÁLIA... UM TEXTO CHEIO DE FORÇA E TERNURA.
DEPOIS DE UM VULTO DESTES INTERROGO-ME SOBRE O QUE VIRÁ A SEGUIR...
BOM FIM DE SEMANA COM SOL DESSE LADO
BEIJINHOS GRANDES :))
ALEXANDRE
SUBSCREVO TOTALMENTE O SEU COMENT.!!
Querida Teresa
Natália C.de.Sousa. uma Senhora poetisa - admirável como mulher de letras/intelectual de muito respeito
"Não corras, ó meu navio
Navega mais devagar,
Que nuvens correndo em rio,
Quem sabe onde vão parar?
Que este destino em que venho
É uma troça tão triste;
Um navio que não tenho
Num rio que não existe".
(Natália Correia)
Beijinhos com carinho
BFsemana
Querida Teresa
Foi de facto um lapso de escrita da minha parte.
Pois eu estava a ler uma entrevista que a Natália Correia deu ao Diário de Notícias já bastante antiga
(entrevista concedida a Antónia de Sousa) procurava eu o texto completo em que faz parte este pequeno excerto. Daí o meu erro
“É aquilo a que eu chamo o cansaço do poder masculino que desemboca no impasse temível do tal equilíbrio nuclear que criou uma situação propícia a que os valores femininos possam emergir, transportando a sua mensagem.”
(NATÁLIA CORREIA)
Muito Obrigada pela chamada de atenção
Beijinhos com carinho
Obrigado, Teresa. Por nos trazeres aqui a nossa Natália.
Parabéns e bom fim-de-semana
Um contributo inestimável para a nossa visão da Natália Correia de quem me confesso admiradora. Obrigada. **
Fui amigo da Natália e faço parte da fundação...
Os Deuses não vivem na lagoa, apenas recolhem o pranto, transformado manto de água em certas noites de encanto.
Bom domingo...feliz dia da mãe...
Doce beijo
Nem me atrevo a comentar quem foi ou o que foi Natália Correia como mulher, poeta, deputada...
MULHER QUE ADMIRAVA NAS PALAVRAS E NO SEU PORTE ALTIVO E DE VOZ CHEIA.
Mais uma vez foste uma previligiada ao poder conviver com ela e com o Ary.
bjos
Ana Paula
Magnífico este seu post, vou voltar aqui novamente para beber destes saberes.. Um abraço.
Quanto te invejo as horas de privacidade com tão ilustre senhora. Cada um faz as suas escolhas e, se estas forem tomadas de consciência, não vejo mal algum na opção de ficar sozinha. Se és feliz com a condição em que te encontras, se assim desejas estar, força. Não te desejo felicidades porque daquilo que descobri de ti através das tuas palavras, sei que o és, à tua maneira és. om os momentos de solidão e tudo!
Quem melhor do que um estravagante, convicto e corajoso Ary dos Santos para "definir" a atália Correia? Quem mais?
Os meus parabbés, adorei o teu espaço de reflexões,´
RaSp
Nas asas de um sonho aqui cheguei.
Lindo o que vi
Beijo sonhador
Olá.
Aqui estou tentando dizer algumas palavras. Da Natália, lembro-me quando ela fez os versos 'ao púdico' que só lá tinha ido as vezes para fazer os filhos (estou sorrindo). Mas há muitas outras 'GRANDES MULHERES' no nosso país. Estou me lembrando de Inês Fontinha, uma mulher que pouco se houve falar, uma vez que na sociedade em que vivemos, não interessa tocar em muitas feridas.
E depois há as grandes mulheres 'ANÓNIMAS', essas que a comunicação social não fala, as que não dão audiências.
Desejo que fiques bem.
E a felicidade por aí.
Manuel
Herdei do meu Pai uma paixão por Natália Correia. Ele privou com ela, numa fase em que se dedicava ao jornalismo e guardou com ele algumas cartas que ela lhe dedicou.
Leu-me muita da sua poesia, cheguei a adormecer a ouvi-lo a ler...
Gostei muito de te ler.
Um abraço ;)
Teresa David,
Depois de ter passado pela primeira e segunda postagens e agora nesta, sinto-me impotente para verbalizar um comentário.
Deliciei-me!
Beijinhos
do Pepe.
Muito bom poder ler mais sobre essa tremenda poetisa a quem h� pouco tempo conheci atrav�s dos versos.
Bjos Teresa
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