terça-feira, abril 24, 2007

Não podendo falar para toda a terra
direi um segredo a um só ouvido

LUIZA NETO JORGE

OS HOMENS NÃO SE MEDEM AOS PALMOS, AS MULHERES TAMBÉM NÃO!
Sempre me pareceu que o que tem feito as mulheres não conseguirem chegar tão facilmente a lugares de poder, passa essencialmente pela emotividade, por vezes mal gerida, que lhes bloqueia a leitura objectiva em algumas situações.
Talvez por isso, sejam acusadas de masculinas, aquelas que conseguem uma firmeza de vontade maior que o comum, bem como clareza de análise.
Poder-me-ão acusar de machismo. Estou-me nas tintas! Conheci mulheres fantásticas ao longo de vida que me fizeram acreditar na nossa força ímpar. Daí sentir uma enorme tristeza quando vejo mulheres dispersarem as suas energias em futilidades.
Serviu este preâmbulo para falar de uma mulher de um talento e sensibilidade desmesurados, cuja poesia considero da melhor do Século XX.
Nasceu com uma deformação física enorme. O seu corpo mal raiava o 1,50m e as suas costas eram desfiguradas por uma bossa. Mas os olhos, os seus enormes olhos, argutos e inteligentes, denunciavam a grandeza da sua vontade firme de viver.
Rumou a Paris, onde habitou uma mansarda encavalitada no alto de um prédio. cuja escadaria lhe tornava penoso o quotidiano.
Voltou a Portugal. A recordação que dela guardo situa-se no fundo da Brasileira do Chiado, sentada, rodeada de amigos, com uma expressão fechada mas não triste.
Quis o Amor. E teve-o, com uma intensidade que qualquer mulher escorreita de corpo, mas aleijada da cabeça, nunca conhecerá!
Desejou um filho. Pariu-o do homem que amou. Nasceu bonito e escorreito! O Manuel João Gomes, nome do seu companheiro era mais novo do que ela. Tradutor exímio e rigoroso.
Morreu há pouco tempo, depois de fenecer da ausência da amada, que o deixara alguns anos antes com 50 anos de idade.
Uma passagem um pouco breve, mas vivida com a intensidade de quem sabe que não pode augurar a muito tempo. Assim, não perdeu um dia sequer com auto-piedade ou indolência.
Falo da Luiza Neto Jorge. O meu falecido companheiro, pai do meu filho mais novo, com ela privou muitos anos, e passou-me um retrato fidedigno e apaixonante da sua força de mulher.
Resta a obra gigante que nunca morrerá, com pujança nas palavras, visceral, sem nenhum resquício de lamechice balofa.
Soube que era sobrinha do Prof. Ricardo Jorge, figura eminente deste País, mas não um grande português, conforme se constatou na lista errática do infeliz programa de televisão.
Aqui fica um poema dela que tem uma história comigo passada.
Anos atrás um restaurante do Pragal onde tinha em exposição alguns dos meus quadros, decidiu em jeito de homenagem fazer um jantar que denominaram: Venha jantar com..., no meu caso com a Teresa David.
Havia uma grupo enorme de jovens, e quando decidi ler alguns poemas da Luiza, fiz uma intrudução sobre a sua figura e dimensão humana. Foi nessa altura que ouvi uns risinhos de jovens, que dispararam quando falei na sua deformidade física.
Irritei-me tanto que peguei em cadeiras, fui buscá-los por um braço e obriguei-os a ouvir a poesia da Luiza, sem pestanejar sequer, bem á minha frente, como se fazia aos alunos mal comportados.
No final ficaram boquiabertos e acabaram por estar duas horas á conversa comigo o que foi bem enriquecedor e cativante para ambas as partes.
O CORPO INSURRECTO
Sendo com o seu ouro, aurífero.
o corpo é insurrecto.
consome-se, combustível,
no sexo, boca e recto.
Ainda antes que pegue
aos cinco sentidos a chama,
por um aceso acesso
da imaginação
ateiam-se à cama
ou sítio algures,
terra de ninguém,
(quem desliza é o espaço
para o corpo que vem)
labaredas tais
que, lume, crepitam
nos ciclos mais extremos,
nas réstias mais intímas,
as glândulas, esponjas
que os corpos apoiam,
zonas aquáticas
onde os órgãos boiam.
No amor, dizendo acto de o sangrar,
apertado o corpo do recém-nascido
no ovo solar,
há ainda um outro
corpo incluído,
mas um corpo aquém
de ser são ou podre,
um repuxo, um magma,
substância solta,
com pulmões
Neste amor equívoco
(ou respiração),
sendo um corpo humano,
sendo outro mais alto,
suspenso da morte,
mortalmente intenso,
mais alto e mais denso,
mais talhado é o golpe
quando o põem em prática
com desassossego na respiração
e o sossego cru de quem,
tendo o corpo nu,
a carne ardida,
lhe pede o ladrão
a bolsa ou a vida
Teresa David-foto tirada do livro de poesia completa da autora publicado pela Assirio & Alvim

quinta-feira, abril 19, 2007

Há mais de um ano publiquei esta história, mas como nessa altura eram poucos os que me visitavam, decidi pegar-lhe de novo, retocá-la e voltar a editá-la aqui. Espero que gostem!
AS NINFAS
Fizera há pouco tempo 15 anos e meus Pais nunca me tinham autorizado saídas á noite.
Contudo, tinha um primo em quem os meus pais confiavam incondicionalmente.
Com muitas explicações acabou por conseguir autorização para o acompanhar a um jantar de intelectuais.
Este primo era de uma precocidade enorme, tendo aos 10 anos publicado um livro, o único, e cedo se tornou alguém bem conhecido quando fundou a Assírio & Alvim, que ainda hoje edita obras com enorme critério de qualidade. Era, e é, o Alvim. Acabou por se ligar ao mundo editorial e percorrer em postos de chefia quase todas as grandes Editoras Nacionais. Ainda continua no ramo.
Aquele jantar pareceu-me bastante estranho na medida em que não entendia quase nada do conteúdo das conversas que se atropelavam sobre a mesa, logo, após alguns copos de vinho que nunca bebera, quando um falecido crítico de Arte, em particular de Dança, de nome Tomáz Ribas, que era gay e tinha um fraquinho pelo meu primo, propôs irmos todos para um bar nas Avenidas Novas propriedade de um actor, que por coincidência era casado com uma professora de bailado com a qual eu tivera aulas de dança, casamento que acabou em divórcio apesar de ter restado uma enorme amizade, mas ele era inequivocamente homossexual, saltou-me logo o pézinho e com uma euforia quase infantil gritei ao ouvido do meu primo: Vamos, vamos!
Como já foi dito atrás, eu nunca bebera álcool antes. Aqueles dois copos de vinho já me tinham deixado uma ligeira névoa em volta da realidade, contudo, não a suficiente para que não recorde até hoje, o que a seguir presenciei.
Um toque na porta fez acender uma luz azul, o que me despertou a curiosidade e fez voltar para ver quem iria entrar.
Quase caí do banco onde estava sentada quando vejo entrar o Rudolfo Nureyev seguido por meia dúzia de jovens rapazes, todos, incluíndo ele, vestidos com túnicas transparentes, collants, e coroas de louros.
Pensei de imediato: - Quem me mandou a mim beber vinho! Será mesmo ele?
Cochichei para o meu primo: - É quem estou a pensar?
Ele confirmou com um discreto aceno assentivo de cabeça, fez-me sinal com o dedo nos lábios para nada dizer.
Calei-me sim, mas olhei-o directamente nos olhos com um olhar que deveria ser no mínimo esbugalhado de espanto e admiração! Tinha-o visto nas vésperas a dançar no S. Luis com a Margot Fontaine.
No palco parecera-me completamente inatingível, qual deus voando sobre montes e riachos. Agora estava diante de mim, a uma distância que se esticasse o braço poder-lhe-ia tocar, sorrindo-me e a enviar-me um leve beijo com a ponta dos dedos.
Quedei-me sem ouvir nada do que se falava na nossa mesa. Apenas devorava com o olhar tudo o que se passava em meu redor.
No entanto o que se seguiu foi bem terreno e carnal. Todos se tocavam cada vez mais, na devida proporção dos copos que iam deslizando pelas gargantas.
Mesmo a parecer algo a aproximar-se dum bacanal, aquelas ninfas brancas de braços esquálidos, mãos delicadas, nunca me pareceram raiar a obscenidade, mas sim a exibição do prazer dos sentidos.
São quase 5 da manhã! - sussurou-me o meu primo ao ouvido.
Foi como se um estalar de dedos junto ao meu tímpano acontecesse. Senti-me como uma Cinderela tardia.
Ai que os meus Pais nos vão matar! - Comentei alto demais, num pânico que me fazia tremer as pernas.
Saímos discretamente, sem que nenhuma daquelas etérias e altamente embriagadas personagens desse pela nossa ausência.
Claro que a chegada a casa não foi nada bonita, mas abstenho-me de a relatar para não provocar um aviltamento àquelas horas mágicas que vivi nessa noite iniciática e longínqua.
Teresa David

quarta-feira, abril 11, 2007

O ARY

1975. Ano em que parecia que o País se tornaria em algo de novo, com toda a gente, ou quase toda, a rumar na mesma direcção, a sonhar construir um Mundo novo.

Lisboa não parecia a mesma, quando todos se cruzavam sorridentes ostentando uma esperança no olhar. A luz da cidade era mais forte, fruto do brilho desses olhos.

As noites fervilhavam como nunca de acontecimentos em celebração permanente da Liberdade.

Havia vários sítios onde nos reuníamos para beber uns copos e conversar com empenho até ao alvorecer. Um deles era o João Sebastião Bar, sito no início da D. Pedro V, quase junto ao jardim de S. Pedro de Alcântara.

Este local era frequentado por músicos bem conhecidos, poetas, ex-prisioneiros políticos, meninas rabinas como eu e quase todos os dias o Ary, com a sua cara enorme guarnecida de melenas negras que esvoaçavam quando a abanava freneticamente durante as suas recitações ou raivas. O corpo gigante de carnes balouçava sem parar enquanto se ouvia o rugir da sua voz de trovão.

Por qualquer razão que desconheço adoptou-me quase desde o primeiro dia que nos vimos e em noites de álcool ingerido em demasia, mal me via transpor a porta gritava: Querida, anda conversar comigo!

Não era exactamente conversar que queria, pois sentava-me ao seu lado entalada entre ele e o meu companheiro da altura, fazia-me festas na cara e chorava copiosamente no meu ombro murmurando palavras soltas.

Nunca o vi com nenhum namorado, pareceu-me mesmo que a sua sexualidade era mal resolvida e aceite por ele próprio, mas tive de intervir em cenas de pancadaria quando o seu lado provocatório vinha ao de cima. Apesar da sua forte constituição, a fragilidade que a bebida lhe trazia diminuia-o ao ponto de ser mal tratado, perante o olhar indiferente de quase toda a gente. Daí um dia que achei estar a tornar-se uma cena de massacre me ter atirado para o meio deles, sob risco de ser esmagada e gritar por auxílio para o arrastar dali para fora e levá-lo a casa com uma arcada aberta e cara coberta de sangue.

Este lado carente, solitário, desiludido com aqueles a quem deixou todo o seu legado e que no fundo nunca o aceitaram como deviam, faziam-no cair em amiúdes depressões das quais fui cúmplice e testemunha. Não me incomoda essa recordação, pois não duvido que quando a sua cabeça repousava no meu ombro, lhe passava as mãos pelo cabelo fino e húmido de lágrimas e suor, ajudava a proporcionar-lhe alguns momentos de paz.

Teresa David - foto da Net

terça-feira, abril 03, 2007

O CABEÇA DE VACA

Esta será, porventura, a minha mais curta história por se tratar de alguém cuja discrição era tão grande, que quase nos esquecíamos que ele estava sentado junto de nós.

Falo do Cabeça de Vaca, alcunha baseada na sua enorme cabeça, ornamentada por farta e longa cabeleira negra, hirsuta barba da mesma cor que lhe tapava o pescoço, tornando-lhe a figura mais atarracada do que realmente era, sempre recurvado, com as pernas cobertas por calças de ganga coçada, traçadas em forte aperto uma na outra e camisa de quadrados á pescador.

Dividia o seu dia entre a Brasileira e uns tascos onde se reuniar na zona do Largo da Misericórdia, em tertúlia de conversa e bebida, alguns intelectuais mais conhecidos uns que outros, mas todos ligados á livralhada e afins, para os quais era venerabundo.

Chegava, sentava-se, sorria, e alguém lhe pagava uma cerveja e uma sandes, por saber que se assim não fosse poderia nada comer todo o dia. Ficava nesse local enquanto fosse chegando gente que lhe pagasse mais uma bebida e quando já não havia mais ninguém disponível na ajuda ao consumo, esgueirava-se para outro dos sítios onde era habitual ir, em demanda de outro alguém para prover-lhe a próxima refeição.

Cntudo, nunca ninguém o viu bêbado, ou a ter atitudes menos finas, pagava até uma rodada a todos, quando alguns cobres lhe apareciam na mão.

Não era um sem abrigo vadio, mas sim alguém nascido num latifúndio alentejano, que pintava bastante bem, tendo optado por uma vida sem compromissos de família ou de sobrevivência. Consta que houve algumas desavenças familiares devido ás suas ideias políticas pois a sua única actividade conhecida, além de pintar, tinha sido integrar uma cooperativa durante a reforma agrária onde trabalhou com afinco.

A única morada que lhe ficou conhecida foi o atelier do grande pintor João Hogan, para as bandas de Santos-o-Velho, que por admirar a sua criatividade, lhe facultou uma cama entre as tintas e os pincéis.

Falava pouco, mas tudo o que dizia, denunciava a sua vasta cultura. Quando olhava para as mulheres fazia um sorriso bonito, pouco visível entre as densas pilosidades e nada dizia, mas apesar do seu aspecto não ser muito atractivo ainda se lhe conheceram duas namoradas e durante os namoros desapareceu dos locais do costume.

Como todas as pessoas que escolhem caminhos socialmente desintegrados tinha necessidade de pouco falar de si, daí quando soubemos da sua prematura morte pelos 40 anos, ninguém estranhou que tivesse sido tão discreto como na vida, tombou, como se tivesse tropeçado, á saída do Café Estádio, no Largo da Misericórdia e quando o foram ajudar a erguer estava morto.

Teresa David-foto minha do Chiado