quarta-feira, abril 11, 2007

O ARY

1975. Ano em que parecia que o País se tornaria em algo de novo, com toda a gente, ou quase toda, a rumar na mesma direcção, a sonhar construir um Mundo novo.

Lisboa não parecia a mesma, quando todos se cruzavam sorridentes ostentando uma esperança no olhar. A luz da cidade era mais forte, fruto do brilho desses olhos.

As noites fervilhavam como nunca de acontecimentos em celebração permanente da Liberdade.

Havia vários sítios onde nos reuníamos para beber uns copos e conversar com empenho até ao alvorecer. Um deles era o João Sebastião Bar, sito no início da D. Pedro V, quase junto ao jardim de S. Pedro de Alcântara.

Este local era frequentado por músicos bem conhecidos, poetas, ex-prisioneiros políticos, meninas rabinas como eu e quase todos os dias o Ary, com a sua cara enorme guarnecida de melenas negras que esvoaçavam quando a abanava freneticamente durante as suas recitações ou raivas. O corpo gigante de carnes balouçava sem parar enquanto se ouvia o rugir da sua voz de trovão.

Por qualquer razão que desconheço adoptou-me quase desde o primeiro dia que nos vimos e em noites de álcool ingerido em demasia, mal me via transpor a porta gritava: Querida, anda conversar comigo!

Não era exactamente conversar que queria, pois sentava-me ao seu lado entalada entre ele e o meu companheiro da altura, fazia-me festas na cara e chorava copiosamente no meu ombro murmurando palavras soltas.

Nunca o vi com nenhum namorado, pareceu-me mesmo que a sua sexualidade era mal resolvida e aceite por ele próprio, mas tive de intervir em cenas de pancadaria quando o seu lado provocatório vinha ao de cima. Apesar da sua forte constituição, a fragilidade que a bebida lhe trazia diminuia-o ao ponto de ser mal tratado, perante o olhar indiferente de quase toda a gente. Daí um dia que achei estar a tornar-se uma cena de massacre me ter atirado para o meio deles, sob risco de ser esmagada e gritar por auxílio para o arrastar dali para fora e levá-lo a casa com uma arcada aberta e cara coberta de sangue.

Este lado carente, solitário, desiludido com aqueles a quem deixou todo o seu legado e que no fundo nunca o aceitaram como deviam, faziam-no cair em amiúdes depressões das quais fui cúmplice e testemunha. Não me incomoda essa recordação, pois não duvido que quando a sua cabeça repousava no meu ombro, lhe passava as mãos pelo cabelo fino e húmido de lágrimas e suor, ajudava a proporcionar-lhe alguns momentos de paz.

Teresa David - foto da Net

22 comentários:

M. disse...

A solidão, esse diabo à solta que ataca os seres sensíveis.

António Melenas disse...

Ora aqui está um dos poucos lugares, em que eu, suburbano e não frequentador da "night", passei algum serões nesse período pós 25 de Abril, fvbris e acaloradas discussões no meu Sindicato, que ficava ali perto.
Tens razão no que dizes: o Ary era um torturado, sempre à procura de alguma coisa que nem sabia o quê, mas com uma força interior tão grande que tinha de se manifestar de forma por vezes violenta.
Bom retrato de uma época e de uma personagem ímpar
bjs.

Paúl dos Patudos disse...

Amiga , que sorte teres convivido com tamanho génio da poesia nacional, inconfundível. EU AMO ARY E AS SUAS PALAVRAS tão fortes e cheias de conteúdo.
Dá vontade de gritar bem alto : VIVA O 25 DE ABRIL, SEMPRE!
beijos
Ana Paula

Alexandre disse...

Que privilégio teres privado com o meu poeta preferido!!!

Só por ser assim é que ele escrevia aquelas palavras de força, de raiva...

Assaltam-me inúmeros poemas dele, a maior parte musicados pelos nossos melhores compositores - Cavalo à Solta pelas Margens do teu corpo... - soberbo, este poema e esta canção contribuiram para aquilo que sou hoje...

Beijinhos e obg por trazeres ARY.

Afrodite disse...

Depois do privilégio de ter ouvido esta 'história' da tua boca, soube-me bem lê-la. É uma história triste sobre um Homem de excelência e de excepção.

Prepara-te, já não falta muito... depois da meia-noite, hora a que acaba a animação,
voltarás a contar-me esta e outras histórias, à luz dos pirilampos.

Isamar disse...

Comovi-me ao ler esta recordação de alguém que muito estimei e que me será inesquecível. Conheci-o bem. Antes de 75. Nesse tempo, eu era aluna da Faculdade de Letras de Lisboa e tínhamos amigos comuns.Eras exactamente como tu o decreves. foi assim que o conheci. Uma voz possante num homem frágil como cristal.
Beijinhos

Helena Velho disse...

Ary...Poeta Castrado NÃO!
Todos os iluminados são demasiado frágeis...

Helena Velho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Era uma vez um Girassol disse...

Teresa, és uma Sortuda por duas razões: teres conhecido o poeta que deixou tão belos poemas e poder mitigar-lhe a tristeza, oferecendo-lhe o ombro amigo...
Beijinhos

Pedro Branco disse...

Se eu pudesse escolher alguém para aparecer um dia que seja na Terra, acho que um dos eleitos seria ele. Seguramente.
Beijo.

Luis Eme disse...

Ary é um grande poeta, porque a poesia boa, mesmo povoada de palavras que fervem, é eterna...

Acho que só vi o Ary ao vivo uma vez, num restaurante Lisboeta. Ocupava a mesa toda, até por se perceber que gostava de falar alto, fazer-se notado.

Como tu bem dizes, Teresa, parece que a questão da sua opção sexual nunca foi bem resolvida, principalmente por ele próprio. Pelo que tenho lido, não tinha muito orgulho em ser uma "bicha".

Em relação aos "outros", que falas, e que recebem os seus rendimentos dos direitos de autor, sempre foram muito estranhos e obliquos nestas questões da sexualidade. Basta ver o que fizeram ao Fogaça, no princípio da década de sessenta, salvo erro.

O curioso, é que mesmo com tratamento abaixo de cão (por alguns membros do comité central, certamente envergonhados por terem como camaradas, paneleiros) tanto o Ary com o Fogaça, entregaram os seus bens, em testamento, ao seu partido.

MJ disse...

Querida Teresa :-)

Homem fantástico, este nosso Ary.
Só de homens "fortes" e ao mesmo tempo sensíveis, como ele, pode brotar tão genuina poesia.

Que privilégio teres podido privar com ele!

Que pena não valorizarem os "grandes" e enaltecê-los ainda mais enquanto eles estão entre nós :-((

Esteja ele onde estiver... Um grande Abraço, Poeta!

MJ disse...

E não resisto a deixar aqui algumas palavras dele que ao definirem o poeta, "denunciavam" exactamente o homem que ele era e que, aqui, ficou provado.

...
Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce á rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.
...

bettips disse...

Ano em que parecia o 1º ano dos poetas livres! Emocionante a tua descrição, especialmente porque gostava muito dele, da sua fraqueza/força tão mal entendida. Foi lindo, trazer esta recordação assim, ao colo das tuas palavras. Bjinho

vida de vidro disse...

Foi, sem dúvida, um momento notável ler esta descrição, em discurso directo, de alguém que profundamente admiro.
Um beijo e obrigada.

ASPÁSIA disse...

OLÁ TERESINHA

JÁ VI QUE TENS VOCAÇÃO PARA OFERECER O OMBRO A QUEM DELE PRECISA.
NESTE´CASO NÃO CALCULAVA QUE TIVESES SIDO QUSE UMA MÃE,ENFIM UMA IRMÃ DADO SERES MAIS NOVA, PARA O ARY, QUE TB. MUITO ADMIRO.
TENHO UM CD COM POESIA DELE DITA POR ELE, É SEMPRE UMA GRANDE EMOÇÃO REOUVI-LO.
RECORDÁ-LO ATRAVÉS DAS TUAS PALAVRAS VIVIDAS FOI TAMBÉM UMA EMOÇÃO.
OBRIGADA POR NO-LO TRAZERES ASSIM, COMO AINDA TENTANDO DEFENDE-LO DAS MENTES CASTRADAS, COMO NAQUELA NOITE DA PANCADARIA, EM QUE MAIS UMA VEZ FOSTE UMA GLADIADORA!!

BEIJINHO GRANDE.
OUTRO PARA O ARY, ONDE QUER Q ESTEJA.

Conceição Paulino disse...

e por referência ao k atrás disse: aqui está um "homem realmente importante" (HRI=VIP) a quem a poesia portuguesa smp será credora.
E se lhe devemos respeito enquanto homem e poeta grande, os factos k fazem a "pequena história", mas k afinal dão dimensão à outra, à oficial, não devem ser perdidos. Quem com ele não privou pode imaginar um Minotauro , força, energia....mas como qq e todo ser humano tinha as suas fragilidades e afinal foram essas k tornaram a sua poesia imortak pq + humanizada.
O meu respeito e gratidão a ary dos Snaots. Um abraço grande a ti, pela partilha.
Creio k agora qnd o ler, sentirei sua cabeça em meu ombro...

Cusco disse...

Olá. Venho agradecer a visita e comentário na minha casota...!
Obrigado também pelas partilha destes momentos.
Aqui aprende-se e bebe-se conhecimento..
Até breve!

Lia disse...

Talvez procurasse nesse contacto a força das suas palavras...

Um beijo

sonhadora disse...

deixo-te sonhos das marés prateadas do meu mar.
Beijinhos embrulhados em abraços

bettips disse...

Venho deixar-te um abracinho. E pegar de novo na tua prosa do poeta! Fica BEM.

jorge esteves disse...

Era, como ele gritava, essa a sua condição humana:

'Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto
nos rasga e nos estilhaça a carne exposta.
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme
a Humanidade que nos foi imposta.
Onde nos encontramos, divergimos.
É por sermos iguais que nos esquecemos
que foi do mesmo sangue,
que foi do mesmo ventre que surgimos.'


Abraços!