terça-feira, abril 03, 2007

O CABEÇA DE VACA

Esta será, porventura, a minha mais curta história por se tratar de alguém cuja discrição era tão grande, que quase nos esquecíamos que ele estava sentado junto de nós.

Falo do Cabeça de Vaca, alcunha baseada na sua enorme cabeça, ornamentada por farta e longa cabeleira negra, hirsuta barba da mesma cor que lhe tapava o pescoço, tornando-lhe a figura mais atarracada do que realmente era, sempre recurvado, com as pernas cobertas por calças de ganga coçada, traçadas em forte aperto uma na outra e camisa de quadrados á pescador.

Dividia o seu dia entre a Brasileira e uns tascos onde se reuniar na zona do Largo da Misericórdia, em tertúlia de conversa e bebida, alguns intelectuais mais conhecidos uns que outros, mas todos ligados á livralhada e afins, para os quais era venerabundo.

Chegava, sentava-se, sorria, e alguém lhe pagava uma cerveja e uma sandes, por saber que se assim não fosse poderia nada comer todo o dia. Ficava nesse local enquanto fosse chegando gente que lhe pagasse mais uma bebida e quando já não havia mais ninguém disponível na ajuda ao consumo, esgueirava-se para outro dos sítios onde era habitual ir, em demanda de outro alguém para prover-lhe a próxima refeição.

Cntudo, nunca ninguém o viu bêbado, ou a ter atitudes menos finas, pagava até uma rodada a todos, quando alguns cobres lhe apareciam na mão.

Não era um sem abrigo vadio, mas sim alguém nascido num latifúndio alentejano, que pintava bastante bem, tendo optado por uma vida sem compromissos de família ou de sobrevivência. Consta que houve algumas desavenças familiares devido ás suas ideias políticas pois a sua única actividade conhecida, além de pintar, tinha sido integrar uma cooperativa durante a reforma agrária onde trabalhou com afinco.

A única morada que lhe ficou conhecida foi o atelier do grande pintor João Hogan, para as bandas de Santos-o-Velho, que por admirar a sua criatividade, lhe facultou uma cama entre as tintas e os pincéis.

Falava pouco, mas tudo o que dizia, denunciava a sua vasta cultura. Quando olhava para as mulheres fazia um sorriso bonito, pouco visível entre as densas pilosidades e nada dizia, mas apesar do seu aspecto não ser muito atractivo ainda se lhe conheceram duas namoradas e durante os namoros desapareceu dos locais do costume.

Como todas as pessoas que escolhem caminhos socialmente desintegrados tinha necessidade de pouco falar de si, daí quando soubemos da sua prematura morte pelos 40 anos, ninguém estranhou que tivesse sido tão discreto como na vida, tombou, como se tivesse tropeçado, á saída do Café Estádio, no Largo da Misericórdia e quando o foram ajudar a erguer estava morto.

Teresa David-foto minha do Chiado

24 comentários:

bettips disse...

Mais uma das tuas belas descrições de vida...esta cheia de poesia e pintura.... Além das palavras, fica a foto, puríssima, que acompanha quem já não existe: Bjs

Marta Vinhais disse...

Mais um dos teus retratos bem definidos de vida e das personagens.
Como sempre bem escrito e leve!
Obrigada pela partilha
Beijos e abraços
Marta

M. disse...

Impressionou-me, a tua história. Faz-me sempre pena os que morrem na rua, talvez porque tenha a ideia de que aí, nessas condições imprevistas, estarão mais sós.

Alexandre disse...

Uma história deliciosa que soubeste contar muito bem...

Obrigado! Já fiquei com mais informação que não tinha, num local onde passo tantas vezes... parece impossível... passamos e não vemos as coisas...

Beijinhos! Bom regresso!!!

Helena Velho disse...

Olá Teresa!!
Mais uma personagem tão fascinante!
Gostei, como sempre, de ouvir esta história nas tuas palavras simples e ao mesmo tempo harmoniosas.
Um bj.
HMV

Helena Velho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Titas disse...

uma história gulosa, que apetecia continuar a ouvir. Sim, porque mais do que ler, parece-me ouvir as tuas histórias.

Do "Cabeça de Vaca", retiro a lição de dignidade de vida e de morte.

Afrodite disse...

esta é a prova de que uma bela história, só é uma belíssima história, se bem contada!

Afrodite disse...

caraças, esqueci-me do beijo...

§(~_~)§ un bacio sexy da Afrodite
(una faccia dell'angelo - senza offesa - nun corpo spettacolare, con tutto sul suo posto, molto su termine di consegna, senza additivi né siliconi)

MJ disse...

Bom dia, Teresa :-)

Já tinha lido a "história" ontem mas só hoje tive tempo para deixar um comentário. :-)

Tal como as anteriores, deixou-me com um arrepiozinho e uma certa nostalgia no final da sua leitura.

E sabes o que me está a acontecer? Estou a "adoptar" estas pessoas todas como se de meus conhecidos se tratassem, tão perfeita e real é a descrição que delas fazes.

Todas elas merecem uma compilação em livro.

Pensa nisso :-)

Beijo grande*

António Melenas disse...

Mais um flash da vida Lisboeta de há umas década atrás, que aqui retratas com muita vivacidade e realismo. Destas pequenas histórias se faz a via de uma cidade.
Um beijinho

Luis Eme disse...

Uma história de vida, bem contada, igual a tantas outras, de pessoas que teimam em viver de uma forma diferente...

Morre-se e vive-se assim, no meio de um Largo...

david santos disse...

Olá!
Belo trabalho. Parabéns!
Tem uma boa Páscoa

Cusco disse...

Olá! Aproveito para deixar os votos de uma Santa e Feliz Páscoa!
O texto que acabei de escrever tem por objectivo homenagear todos os meus familiares: Os vivos, os mortos e os que estão por nascer ainda. O mundo é muito, muito pequeno.. … quem sabe se esse cheiro a flores não te persegue e protege a ti também….Para Sempre!!!
Até breve
SE DEUS QUISER

MJ disse...

Um beijo cheio de sol*

bettips disse...

Poucas palavras tenho mas deixo-te um abraço (as festas mexem comigo!)

Licínia Quitério disse...

Por mais esta descrição plena de humanidade, deixo-te um abraço e os desejos de uma Páscoa harmoniosa.

ASPÁSIA disse...

OLA AMIGA

ENFIM CONSEGUI LER...
NUNCA TINHA OUVIDO FALAR NESTE PERSONAGEM E MEU PAI TB. NÃO.

MAIS UMA FIGURA DAS ARTES Q AJUDOU A CONSTRUIR A MEMÓRIA DA NOSSA CIDADE... QUE TÃO CEDO SE VIU PRIVADA DESTE "CABEÇA DE VACA".

A MEMÓRIA DO SEC. XX... QUANDO AINDA POR CÁ HAVIA TERTÚLIAS E TERTULIANOS... QUE HOJE SÃO RAROS...
O MEU PAI TEM UMA TERTULIA MENSAL QUE SE REUNE NUM ALMOÇO MENSAL, MAIS DEDICADA AO XADREZ, EMBORA DE FALE DE TUDO...

SE NÃO FALARMOS ENTRETANTO, DESDE JÁ DESEJO BOA ~PÁSCOA

BEIJOS COM AMÊNDOAS
:)

angel bar disse...

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Uma Páscoa muito feliz e cheia de boa disposição.

sonhadora disse...

Uma descrição fantástica de alguém que viveu a vida com discrição.
Uma boa Páscoa.
Beijinhos

Tozé Franco disse...

Boa tarde Teresa:
Maia uma bela história,das muitas que por aí andam à espera que as escrevam, mas só alguns têm sensibilidade para o fazer.
Parabéns.
Uma Santa Páscoa.

Alexandre disse...

Beijinhos e Boa Páscoa!!!

Conceição Paulino disse...

as vidas k circulam, as + das vezes ignoradas, são ricas de conteúdo e depois publicam-se revistas e revistas, denominadas "rosas" com personagens e acontecimentos tão vazios k aflige. mas ganham o título de V.I P's....
Essas não leio. Paro às vezes nas bancas a ver as capas e chego a rir, mesmo à gargalhada só com as capas e títulos....
Obrigada por + esta
Bj
Luz e paz

Alexandre disse...

tem piada, só conhecia um cabeza de vaca e era, como o próprio nome indica, o espanhol que escreveu os "naufrágios"....