
direi um segredo a um só ouvido
LUIZA NETO JORGE
A SOLITÁRIA-aguarela por mim pintada
1975. Ano em que parecia que o País se tornaria em algo de novo, com toda a gente, ou quase toda, a rumar na mesma direcção, a sonhar construir um Mundo novo.
Lisboa não parecia a mesma, quando todos se cruzavam sorridentes ostentando uma esperança no olhar. A luz da cidade era mais forte, fruto do brilho desses olhos.
As noites fervilhavam como nunca de acontecimentos em celebração permanente da Liberdade.
Havia vários sítios onde nos reuníamos para beber uns copos e conversar com empenho até ao alvorecer. Um deles era o João Sebastião Bar, sito no início da D. Pedro V, quase junto ao jardim de S. Pedro de Alcântara.
Este local era frequentado por músicos bem conhecidos, poetas, ex-prisioneiros políticos, meninas rabinas como eu e quase todos os dias o Ary, com a sua cara enorme guarnecida de melenas negras que esvoaçavam quando a abanava freneticamente durante as suas recitações ou raivas. O corpo gigante de carnes balouçava sem parar enquanto se ouvia o rugir da sua voz de trovão.
Por qualquer razão que desconheço adoptou-me quase desde o primeiro dia que nos vimos e em noites de álcool ingerido em demasia, mal me via transpor a porta gritava: Querida, anda conversar comigo!
Não era exactamente conversar que queria, pois sentava-me ao seu lado entalada entre ele e o meu companheiro da altura, fazia-me festas na cara e chorava copiosamente no meu ombro murmurando palavras soltas.
Nunca o vi com nenhum namorado, pareceu-me mesmo que a sua sexualidade era mal resolvida e aceite por ele próprio, mas tive de intervir em cenas de pancadaria quando o seu lado provocatório vinha ao de cima. Apesar da sua forte constituição, a fragilidade que a bebida lhe trazia diminuia-o ao ponto de ser mal tratado, perante o olhar indiferente de quase toda a gente. Daí um dia que achei estar a tornar-se uma cena de massacre me ter atirado para o meio deles, sob risco de ser esmagada e gritar por auxílio para o arrastar dali para fora e levá-lo a casa com uma arcada aberta e cara coberta de sangue.
Este lado carente, solitário, desiludido com aqueles a quem deixou todo o seu legado e que no fundo nunca o aceitaram como deviam, faziam-no cair em amiúdes depressões das quais fui cúmplice e testemunha. Não me incomoda essa recordação, pois não duvido que quando a sua cabeça repousava no meu ombro, lhe passava as mãos pelo cabelo fino e húmido de lágrimas e suor, ajudava a proporcionar-lhe alguns momentos de paz.
Teresa David - foto da Net
Esta será, porventura, a minha mais curta história por se tratar de alguém cuja discrição era tão grande, que quase nos esquecíamos que ele estava sentado junto de nós.
Falo do Cabeça de Vaca, alcunha baseada na sua enorme cabeça, ornamentada por farta e longa cabeleira negra, hirsuta barba da mesma cor que lhe tapava o pescoço, tornando-lhe a figura mais atarracada do que realmente era, sempre recurvado, com as pernas cobertas por calças de ganga coçada, traçadas em forte aperto uma na outra e camisa de quadrados á pescador.
Dividia o seu dia entre a Brasileira e uns tascos onde se reuniar na zona do Largo da Misericórdia, em tertúlia de conversa e bebida, alguns intelectuais mais conhecidos uns que outros, mas todos ligados á livralhada e afins, para os quais era venerabundo.
Chegava, sentava-se, sorria, e alguém lhe pagava uma cerveja e uma sandes, por saber que se assim não fosse poderia nada comer todo o dia. Ficava nesse local enquanto fosse chegando gente que lhe pagasse mais uma bebida e quando já não havia mais ninguém disponível na ajuda ao consumo, esgueirava-se para outro dos sítios onde era habitual ir, em demanda de outro alguém para prover-lhe a próxima refeição.
Cntudo, nunca ninguém o viu bêbado, ou a ter atitudes menos finas, pagava até uma rodada a todos, quando alguns cobres lhe apareciam na mão.
Não era um sem abrigo vadio, mas sim alguém nascido num latifúndio alentejano, que pintava bastante bem, tendo optado por uma vida sem compromissos de família ou de sobrevivência. Consta que houve algumas desavenças familiares devido ás suas ideias políticas pois a sua única actividade conhecida, além de pintar, tinha sido integrar uma cooperativa durante a reforma agrária onde trabalhou com afinco.
A única morada que lhe ficou conhecida foi o atelier do grande pintor João Hogan, para as bandas de Santos-o-Velho, que por admirar a sua criatividade, lhe facultou uma cama entre as tintas e os pincéis.
Falava pouco, mas tudo o que dizia, denunciava a sua vasta cultura. Quando olhava para as mulheres fazia um sorriso bonito, pouco visível entre as densas pilosidades e nada dizia, mas apesar do seu aspecto não ser muito atractivo ainda se lhe conheceram duas namoradas e durante os namoros desapareceu dos locais do costume.
Como todas as pessoas que escolhem caminhos socialmente desintegrados tinha necessidade de pouco falar de si, daí quando soubemos da sua prematura morte pelos 40 anos, ninguém estranhou que tivesse sido tão discreto como na vida, tombou, como se tivesse tropeçado, á saída do Café Estádio, no Largo da Misericórdia e quando o foram ajudar a erguer estava morto.
Teresa David-foto minha do Chiado