quinta-feira, março 01, 2007














O HOMEM DA BARATEIRA

Ainda não tinha 20 anos quando comecei a frequentar a Cervejaria Trindade, onde reencontrei algumas das pessoas que anteriormente tinha conhecido na Brasileira.

Era um entretanto, entre a saída do trabalho, e o regresso a casa, que me sabia bem. Ouvia gente interessante delirar, contar histórias, falar á boca baixa da situação política, e também assistia á presença dos habituais clientes, dos quais, sem dúvida, o homem da Barateira, era o mais invulgar.

Logo no primeiro dia reparei na sua figura esquálida, de faces encovadas, tez acinzentada, cabelo já grisalho, que solitariamente se encontrava sentado numa mesa pouco distante de mim. Á sua frente encontravam-se 3 canecas de litro de cerveja preta, que sem acompanhamento de comida, ia bebendo vagarosamente, prática esta que repetia três vezes ao dia, em jeito de refeição.

Ao cabo de muitos anos de convívio com gente, muita dela já falecida, onde destaco o Adriano Correia de Oliveira e o Manuel da Fonseca, pessoas que me encantavam pelo seu cantar e falar, o homem da Barateira permanecia sempre na mesma mesa, com roupa sempre igual, camisa branca e calça cinzenta, o mesmo ar fechado, acompanhado pela sua fiel cerveja preta.

Não comunicava com ninguém, salvo se alguma criança dele se acercava. Então a cara iluminava-se num sorriso triste, e dizia-lhe algumas palavras inaudíveis para mim.

Claro, que curiosa como sempre fui, acabei por tentar saber a razão de tal comportamento.

Soube então que vivia só, afastado de tudo e de todos, após a morte do filho. A sua vida dividia-se meramente entre a venda dos livros na Barateira, livraria e alfarrabista, mesmo ali ao lado da cervejaria, da qual era sócio, e a Trindade para beber as cervejas.

Morreu há três anos, sozinho, como tinha vivido longos anos, e segundo consta não foram as inúmeras cervejas que o mataram.

Um destes dias ao ler uma história de Monges de Munique que fabricaram uma cerveja preta de grande qualidade, ao ponto de decidirem levá-la a provar ao Papa, mas que devido á longa viagem acabou por azedar e ficar intragável, de tal forma, que diz a lenda, o Papa os obrigou a bebê-la como penitência, até ao fim da vida, veio-me á memória novamente a figura sorumbática do Sr. João Domingos, o homem da Barateira, e da sua penitência com a cerveja preta. Seria coincidência ou ele também saberia da história?

Após a sua morte, em homenagem a tão constante cliente, foi colocado um quadro desenhado a carvão, por autor cujo nome não recordo, num canto discreto da cervejaria, onde se vê a sua imagem, com uma enorme caneca de cerveja preta na mão, prestes a ser bebida.

Teresa David-imagens recolhidas na Net

19 comentários:

ASPÁSIA disse...

BOA TARDE TERESA

UMA HISTÓRIA ALGO MAIS PUNGENTE QUE AS ANTERIORES.
NÃO CONHECI ESTE SENHOR NEM MEU PAI, QUE NÃO FREQUENTAVA A TRINDADE, MAS É PROVÁVEL QUE SE TENHAM VISTO NA BARATEIRA, VISTO MEU PAI SER GRANDE CLIENTE DE LIVROS EM VÁRIOS SÍTIOS, NESSES TEMPOS.

SE EU FOR à TRINDADE TENTAREI VER ESSE DESENHO A CARVÃO.

OS PAIS OU MÃES QUE PERDEM FILHOS, FICAM , COMO É NATURAL, FORTEMENTE MARCADOS PARA TODA A VIDA, COMO ACONTECEU COM MEU PAI.

MEU PAI SOUBE REAGIR, FELIZMENTE, DADO A SUA GRANDE FORÇA MENTAL E OS MUITOS INETRESSES INTELECTUAIS QUE SEMPRE TEVE, NOMEADAMENTE O XADREZ.

INCLUSIVE IMORTALIZOU MINHA IRMÃ MARGARIDA NA ÁREA DO PROBLEMA DE XADREZ, ATRAVÉS DA ATRIBUIÇÃO DO SEU NOME AO "TEMA MARGARIDA" EM XADREZ DE COMPOSIÇÃO.

ESTE NOME É ASSIM CONHECIDO HOJE EM DIA EM TODO O MUNDO DO XADREZ.

CONTINUO ALGO OCUPADA ESTA SEMANA.

AINDA NÃO RESOLVI AQUI PROBLEMAS DE IMPRESSORA, ETC. E NO SÁBADO TENHO AQUI UMA OBRA DE PÔR UM ESTORE À TARDE. SE NÃO FOSSE ISSO TALVEZ FOSSE UM DIA BOM PARA NOS ENCONTRARMOS. OU ENTÃO DOMINGO, ISSO EM PRINCIPIO POSSO MAS TEMO Q A OBRA NAO FIQUE PRONTA NO SÁBADO E ESTES HOMENS TRABALHAM ATE ACABAREM, NAO TÊM DOMINGOS NEM FERIADOS.


BEIJINHOS GRANDES, AMIGA.

Helena Velho disse...

Olá Teresa!

Linda história..com muita alma!
Mais uma vez parabéns e continue!É um prazer lê-la.

Helena Maria Velho

Paúl dos Patudos disse...

è uma delícia recordar-mos imagens da nossa vida não é minha amiga. Sentimo-nos bem, eu falo por mim que gosto .
bjo
Ana Paula

MJ disse...

Boa noite, querida Teresa:

Belas as histórias reais que nos traz e mais bela a forma como as conta.

Escreve REALMENTE muito bem.

Parabéns!

Um beijo grande*

Diafragma disse...

História bonita Teresa.

Fragmentos Betty Martins disse...

Olá Teresa

Estas histórias têm sempre um encanto muito especial (porque conhecemos os locais) porque no tempo ou fora do tempo - parece que somos também alguma personagem - que anda[va] por ali....

Beijinhos
BomFsemana

Aldina Duarte disse...

Acho estas suas histórias reais muito intereessantes e sensíveis, Sempre que passo nos locais que servem de cenário aos seus ilustres personagens recordo-os com a naturalidade com que reparo todos os dias na luz de lisboa.

Obrigada e até sempre!

bettips disse...

Estas cenas da cidade, onde "se reparava" em gentes e nas suas vidas! Encontraste uma forma maravilhosa de nos dar a conhecer tantas coisas, ambientes, pessoas, vidas, daquela época... Um gosto e um abraço, linda!

Licínia Quitério disse...

Retrataste muito bem esse emblema da Trindade. Parece que ainda lá continuo a vê-lo.

Beijinho e bom fim de semana.

Marta Vinhais disse...

Surpreendes mais uma vez com uma história sobre uma personagem que faz parte da cidade.
Como esta, há outras e serão eternas, pois também se tornam parte da nossa própria vida.
Gostei muito - obrigada
Beijos e abraços
Marta

Alexandre disse...

Teresa, estas histórias terão que fazer parte de uma qualquer antologia sobre Lisboa que tu ou alguém venha a escrever.

Nestes pequenos contos recordas figuras que fizeram a cidade no tempo em que a cidade era cosmopolita e humana. Ainda bem que te lembras de pessoas e situações destas.

Estive muitos anos sem ir à Trindade. Há poucos dias voltei para comer uma açorda de marisco à hora e almoço e gostei do ambiente, da comida e do atendimento.

Beijinhos!!!! Bom fim-de-semana.

Alexandre disse...

Teresa, estas histórias terão que fazer parte de uma qualquer antologia sobre Lisboa que tu ou alguém venha a escrever.

Nestes pequenos contos recordas figuras que fizeram a cidade no tempo em que a cidade era cosmopolita e humana. Ainda bem que te lembras de pessoas e situações destas.

Estive muitos anos sem ir à Trindade. Há poucos dias voltei para comer uma açorda de marisco à hora e almoço e gostei do ambiente, da comida e do atendimento.

Beijinhos!!!! Bom fim-de-semana.

M. disse...

Teresa, que sorte tiveste em privar de perto com estas figuras de Lisboa sobre quem podes agora contar-nos estas histórias deliciosas, pondo em todas elas a tua impressão digital. Imagino como deve ser agradável para ti recordá-las através da escrita, ainda que um pouco saudosa também essa memória.

Era uma vez um Girassol disse...

Muito duro perder um filho, raramente se ultrapassa esse desgosto sem marcas muito profundas.
Interessante e comovente história...
Beijinhos

António Melenas disse...

Mais uma pequena história da vida lisboeta, desta vez com um drama pelo meio. Lembro-me bem do senhor da Barateira, pois lá entrava muitas vezes à procura de um livro mais em conta. Mas não conhecia essa faceta das três cervejas pretas. até porque na Trindade muito pouco entrava.
è bom que registes estes episódios que acompanhaste, pois a história de uma cidade não se grava só em estátuas e monumentos mas na forma de viver dos seus habitantes
Um abraço

o alquimista disse...

Pois eu conheci alguns joãos Domingos e havia sempre uma história de vida de caminhos cheios de dor misturada com alegria, lembranças...
Adorei o teu texto...viajei pela minha vida ao l~e-lo...

Doce beijo

Eremit@ disse...

há tantos e tantas personagens assim perdidas nos recnatos das cidades...
Bj

António Melenas disse...

È um espanto esta tua estória. a estória e a maneira como a contas.
Muita coisa tem para contar quem frequentava as tertúlias e os cafés da Lisboa desse tempo.
Continua, que estas estórias fazem também parte da história.
Um abraço

Unknown disse...

Boa tarde
Teresa
Obrigado pelas simples letras a um homem simples que dividia a Trindade pela Associação de Voleibol de Lisboa,
Onde prestou um excelente trabalho no seu anonimato
Parabens a Trindade de o ter recebido sempre bem.
Nos ultimos anos já não bebia a sua cerveja preta, mas chá que o seu médico recomendou e a Direcção da Cervejaria comprou para poder continuar a ter presente o seu mais antigo Cliente.
Que descance em Paz Sr. Domingues

Adelino Silva