segunda-feira, março 12, 2007



O ARAUTO DO FIM DO MUNDO

Como já referi em história anterior, eu trabalhava na baixa e era bancária.

Ao tempo a que se reporta este episódio que a seguir irei contar, já deixara de habitar em Lisboa, e rumara á Margem Sul, onde em 1980, data em que me mudei, se encontravam casas a preços bastantes acessíveis, para bolsas vazias, como a minha,acabada de sair dum divórcio, e com um filho de 3 anos nos braços.

Mas vamos ao que interessa!

Todos os dias atravessava o rio de barco, estava longe ainda de existir o comboio da Ponte, e tinha por companhia, não desejada, mas inevitável, um homem de ar furibundo, moreno, com o cabelo negro fortemente encaracolado, feição de uma dureza desmedida, que a sua raiva ampliava, que passava toda a travessia gritando com quantas forças tinha, profecias catastróficas sobre o final do Planeta.

Esperem, esperem, para ver! Amanhã já não estamos aqui! Hoje vai haver um tremor de terra tão grande tão grande que ninguém escapa! - Dizia.

Quando chegávamos ao Cais baixava o tom, e seguia o seu caminho a falar entre dentes.

No dia seguinte, quando não era no próprio dia no regresso a casa, reencontrava-o e lá recomeçava ele:

Esperem, esperem para ver! Vai haver um maremoto que nem chegamos á outra margem! E ainda bem, quero é que todos os f.... da p... morram!

Sim, por vezes, desfilava todo o seu vernáculo de ódios.

Comecei a perguntar a outras pessoas que viajavam comigo se sabiam quem era aquela incomodativa personagem, mas ninguém o conhecia senão do barco, e eu só pensava:

Ele tem aliança, será que em casa também faz esta lengalenga á família?

Numa vertente do meu trabalho tinha que por vezes deslocar-me a outros Bancos, e numa ida ao BNU com quem deparo? Com ele, o arauto, que muito sossegado no seu canto, empilhava uma resma de papeis. Perguntei a um colega: Ele é sossegado no trabalho?

E recebi finalmente uma explicação: É. Sei ao que se refere, pois já várias pessoas falaram das suas fúrias na rua e no barco, mas segundo alguém, que até é vizinho dele, me disse, apenas faz isso quando está sózinho, pois aqui, e em casa, é pacífico.

Mas sabe a razão de tanta raiva? - Perguntei.

Olhe, ele foi mais um dos que veio das Colónias e lá deixou tudo, e não se conforma com isso, daí esses acessos de raiva, que só consegue ultrapassar despejando tudo cá para fora.

Já o mandaram ao psiquiatra, mas concluíram que é mesmo só raiva, não nenhuma doença psíquica. Mas já percebi que a colega é uma das suas vítimas do barco, não é?

Sou!

E ainda fui durante mais uns anos até mudar de local de trabalho, e deixar de andar de barco.

Teresa David- foto retirada da Net

24 comentários:

o alquimista disse...

Nas ilhas conheço uma história muito parecida...no insólito de erráticas vidas vivem algumas estranhas criaturas de deus...


Doce beijo

Da Casa da Mathilde disse...

Estranha história de vida. No entanto acabei por ficar com algum carinho por este homem. Afinal há tantos pacíficos por aí que têm atitude semelhante em casa. Bem pior!
Beijinhos

M. disse...

Pois, como diz quem escreve o comentário anterior, antes fora de casa...

Helena Velho disse...

OLÁ LINDA!!

Mais uma história que coincide com a realidade de muitos nós, especialmente os que viajam e contactam com o público.Este senhor do arauto , infelizmente não é especimen único...há-os às dezenas...Como te disse trabalhei algum tempo no BFE e tinha um colega, era caixa, super engraçado, bem disposto, amável com os idosos( cheguei a receber cartas para lhe endereçar os parabéns , a felicitar o banco por ter um funcionário assim e inclusivamente algumas a pedir-lhe desculpa mas eram muito velhinhos e já não poderiam deslocar-se mais uma vez ao BFE...), sempre disposto a ajudar e no entanto, um dia recebo um telefonema no m/gabinete - era ext.3505-a dele.
Começou entre gaguejos consecutivos a pedir que eu fosse lá baixo( ao balcão) pois não respondia por ele.Estranhei mas,não pensei 2 x...fui a correr.
O A., meu colega, tinha que atender um africano, negro e não era capaz! 5 missões na Guiné tinham tirado a magia a um homem que tudo tinha para ser bom...e eu , com alguma dificuldade, consegui convencer o gerente a substituí-lo e a não deixar que saíssem comentários , já à boca cheia, de o gajo é maluco...)
Há imensos traumas que empurramos para o subconsciente e esquecemo-nos que ele tem muita força...são estes casos que nos fazem pensar quantos de nós não precisam de uma mão amiga!Tua não o aturaste, ouviste-o e com atenção e isso, por si mesmo, foi um acto louvável, sem riso irónico ou depreciativo.
Mais uma vez escreveste muito bem e revelaste o teu lado melhor.
Um beijo
da
Helena Maria Velho

PS.o programa de viagens mantem-se?

Fragmentos Betty Martins disse...

Querida Teresa

As tuas histórias têm sempre um - quê!

Principalmente um - quê - de humano

Ainda bem para este homem e para a sua família - que os acessos de "raiva" eram bem longe de casa e escolheu o sítio ideal no mar:)

Beijinhos com carinho
BSemana

bettips disse...

Tu atrais o original porque ele sabe que tu o transmites, para o mundo. Teus olhos e ouvidos recolhem a alma dessa gente, é isso! Muito estranha a história. A foto é soberba... àbabuja... Bjinho

Titas disse...

Mais uma interessantíssima (e muito bem narrada) história.

Fez-me lembrar um colega meu, vendedor da Mercedes no C.Santos (como vês, fomos vizinhas de trabalho).

Todos os Domingos ia praticar tiro para o Monte das Perdizes em Monsanto. Concentrava-se e, em vez do alvo, via o seu chefe.

Na segunda-feira, já no emprego, cruzava-se com o chefe e murmurava, aliviado: "se sonhasses o tiro que levaste ontem nos cornos"

ASPÁSIA disse...

OLA TERESIKA

PASSO PARA UM BJITO DE BUONA NOTTE E PARABÉNS AO BALZAQUIANO INFANTE...
AAMNHÃ VENHO LER A HISTÓRIA.

BOA VIAGEM... CUIDADO COM AS NORTADAS...

:))

Marta Vinhais disse...

Personagem bizarra, mas na vida, há realmente coisas que nos traumatizam.
Fácil de compreender a atitude do homem.
História bem escrita como sempre.
Gostei muito.
Beijos e abraços
Marta

MJ disse...

Querida Teresa :-)

Beemm... se me acontecia aparecer pela frente, diariamente, uma personagem destas, desconfio que deixava de fazer a travessia de barco e passava a ir a nado! :-))

Impressionante mesmo, este relato. A "loucura" tem e continuará a ter nuances inexplicáveis e insondáveis.

Mas o facto de ele só destilar a raiva quando se sentia sozinho torna-o um pouco menos "louco"...
Poupava os que lhe eram queridos... :-)

Adorei, como sempre :-) A história e a forma como a contas.

Parabéns ao teu filhote! Pelo aniversário e pela mãe encantadora que tem. :-)

Beijos para ambos*

Paúl dos Patudos disse...

Na nossa vida , cruzam-se figura que nos marcam de qualquer forma.
bjos
Ana Paula

António Melenas disse...

Também esta personagem eu conheci muito bem. Nunca mais o vi. Possivelmente já morreu ou se reformou e não viaja de barco. Deixava toda a gente aterrorizada com as suas ameaças. Uma vez tive o cuidado de o seguir na rua e verifiquei que ia muito certinho, sem gritos nem gestos destrambelhados. Mas alguém que o conhecia me disse que ele era um funcionário exemplar. Só não sabia onde. Há mais gente destrambelhada do que se pensa
Um beijinho

António Melenas disse...

P.S.
Tenho um novo post, desde hoje

Diafragma disse...

Impressionante história, coitado do homem.
E é sempre tão difícil saber como lidar com estas pessoas...

Tozé Franco disse...

História impressionante.
Conheço um sujeito, que por causa da guerra colonial, cada vez que ouve foguetes, esconde-se debaixo das mesas.
Um abraço.

ASPÁSIA disse...

OLÁ TERESA

ESTE PERSONAGEM, TÃO BEM DESCRITO QUE PARECE QUE O VEMOS E OUVIMOS, EU DIRIA QUE ERA UM "VELHO DO ESTUÁRIO"... POIS AO CONTRÁRIO DO OUTRO FAZIA AS PREVISÕES APOCALÍPTICAS MAIS SOBRE A ÁGUA QUE SOBRE AS AREIAS DO RESTELO...

MAIS UM CASO REVELADOR DA GRANDE COMPLEXIDADE DA MENTE HUMANA, CONSTANTEMENTE VÍTIMA DE TRAUMAS E SOFRIMENTOS QUE A PODEM FAZER ESTILHAÇAR-SE A TODO O MOMENTO DOS MAIS DIVERSOS MODOS E MATIZES...
CADA MENTE É UM UNIVERSO.
E SE A "HARMONIA DAS ESFERAS" É PERTURBADA, ENTÃO CADA MENTE PODE DESENCADEAR UM APOCALIPSE FATAL A SI PRÓPRIA OU AOS OUTROS.

BOA NOITE

BEIJINHOS HARMONIOSOS

ASPÁSIA disse...

OLA AMIGA

FINALMENTE FIZ UM SLIDESHOWSESCO (NÃO CONFUNDIR COM CEAUSESCU)... DA NOSSA TARDE IMPERIAL... ESTA NO JARDIM...

UMA BOA NOITE
NÃO SONHES CO O CALIGULA...

BJINHOS (OSCULARUM...)
:))

Perola Granito disse...

Grande cena, como tantas outras q nos vamos deparando por aí...

Perola Granito disse...

Grande cena, como tantas outras q nos vamos deparando por aí...

Perola Granito disse...

Grande cena, como tantas outras q nos vamos deparando por aí...

Alexandre disse...

Interessantíssima mais esta história que trouxeste! E muito bem escrita! Quantas pessoas não poderiam estar retratadas aqui!!!

Beijinhos e bom fim-de-semana!!!

Titá disse...

Não consegui ficar indiferente ao sofrimento desse homem.
Adorei o teu texto.
Beijinhos

Conceição Paulino disse...

não há dúvida de k há muitas formas de loucura.
Bom f.s
bjoca
Luz e paz

Conceição Paulino disse...

não há dúvida de k há muitas formas de loucura.
Bom f.s
bjoca
Luz e paz