quarta-feira, março 21, 2007


Dedico esta postagem á memória de Lucie Aubrac, umas das figuras principais da resistência francesa, falecida dia 14 deste mês com 94 anos. É dela a imagem que ilustra a história a seguir.
A MADAME
Nos meus últimos anos de trabalho almoçava frequentemente só. Estar sempre rodeada de gente esgotava-me a paciência e provocava-me essa imprescindível necessidade de um pouco de espaço para mim própria. Daí aproveitar, quase sempre, a hora de almoço para tentar pôr em dia os inúmeros livros ainda por ler. Mergulhava então, em mundos imaginados por escritores melhores ou piores, mas que serviam de escape á monotonia da rotina de um trabalho fastidioso e repetitivo. Quase invariavelmente recorria ao único restaurante onde conseguia a paz necessária para ler, pois o barulho era mínimo, o empregado de mesa atencioso, e a comida bastante aceitável. Refiro-me á Casa Mourisca, também pastelaria, na Av. Fontes Pereira de Melo. E esta parece-me que ainda existe!
Ora nesse mesmo restaurante, todos os dias, á mesma hora que eu, uma senhora de cabelo pintado de louro muito claro, de pelo menos setenta anos de idade, sentava-se na mesma mesa, pedia a mesma taça de vinho tinto, comia mais ou menos a mesma ementa, bebia o seu café acompanhado de um cigarro e olhava em frente na direcção de um qualquer vazio. Tudo isto em pouco mais de meia hora. Pela sua idade, logicamente não necessitaria de se apressar na refeição para voltar ao trabalho como eu, aliás via-se pelo seu trajar tratar-se de senhora que nunca deveria ter tido um emprego.
Os empregados e empregadas tratavam-na por "Madame", e a sua feição rígida, por mais amáveis que com ela fossem, mantinha-se sempre inalterável.
Como a mesa da Madame era mesmo fronteira á minha, sim, porque nesta coisa de lugares também sempre fui bastante ritualista, divertia-me a mirá-la discretamente.
Ao cabo de algum tempo aquele tratamento por "Madame" começou-me a fazer fervilhar na cabeça recordações dos tempos idos de adolescente escolar. Também aí haviam duas "Madames". Uma convencional, bem aperaltada, feminina, mulher de um Professor Universitário bem colocado no regime salazarista, e outra a antítese desta, que dava pelo nome de Madame Dupias, mulher seca, pouco simpática, ríspida até, que vestia sempre uns saia casaco de saia travada cobrindo escrupulosamente os joelhos, e casaco safari, enquanto os sapatos eram de cabedal forte e feio no Inverno, e sandálias idênticas ás usadas pelas freiras, no Verão. O cabelo parecia que tinha sido cortado á navalhada, mas o que realmente me fazia a maior das confusões, era a falta de dois dedos na mão direita. Apesar da sua austeridade, com muito cuidade acabei por conseguir abordá-la. Aquele aspecto quase masculino, no mínimo andrógino, devia-se a ter sido uma resistente na 2ª Grande Guerra, refugiada no nosso País, a fim de fugir aos nazis.
A Madame do restaurante em nada se assemelhava no aspecto físico á imagem que me ficou da outra dos tempos de Escola. Vestia-se elegantemente, e era bastante feminina. Contudo, apesar disso, o ar áustero, trouxe-me esta aproximação longínqua.
Malgrado essas diferenças, acabei por saber que haviam realmente alguns pontos de encontro entre as duas, pois o empregado de mesa que habitualmente me servia a refeição, com um olhar brilhante de indiscrição contou-me o seguinte:
A Madame almoça aqui há muitos anos, mais exactamente desde que ficou viúva dum francês que teve de fugir de França, por ter ajudado imenso os judeus. Ele e ela também eram judeus, e se tivessem ficado, possivelmente teriam ido parar a um campo de concentração como os outros.
Convém dizer que passado pouco tempo de saber do seu passado, por qualquer pormenor que a memória já apagou, passámos a almoçar as duas, e soube então pela sua voz, onde mantinha ainda um ligeiro sotaque, como o seu marido tinha sido importante na resistência aos Alemães, da sua tristeza de estar a chegar aos 80 anos e completamente só neste País.
Mostrei-lhe um dia esta história que tinha escrito doutra forma, sobre as minhas observações da sua pessoa, antes de a conhecer, e a partir dai partilhámos experiências de vida e até confidências.
Quando lhe disse um dia que no final do mês me iria reformar, pareceu-me ver um brilho de tristeza nos olhos ao afirmar: A Menina era a única alegria dos meus solitários dias, e até isso vou perder! Gostava tanto destes bocadinhos que estávamos juntas a conversar!
Ainda fui algumas vezes depois de reformada á Casa Mourisca almoçar com ela, mas a pouco e pouco a vida afastou-me de idas constantes a Lisboa e na última vez que por lá passei, o empregado de sempre, que pelos vistos continuava a ser o portador das boas ou más notícias, informou-me que a Madame Levy, que vivia no prédio mesmo pegado ao restaurante, morrera só e fora encontrada apenas no dia seguinte pela empregada de limpeza que mantinha há muitos anos.
Mais uma vez, ao receber a notícia, me veio á memória a Madame Dupias, que a meio do ano lectivo já me tinha contado inúmeras histórias aventurosas do seu passado de resistente e como tinha perdido os dois dedos sob tortura, mas dizia com extremo orgulho, que mesmo assim não tinha cedido aos alemães.
Teresa David

19 comentários:

Marta Vinhais disse...

Uma história de vida magnífica - parecia frágil, mas tinha uma personalidade forte e orgulhosa, fiel às suas ideias.
Como sempre, bem escrita Teresa.
Gostei muito.
Beijos e abraços
Marta

Helena Velho disse...

Teresa!Sabe que tudo o que se relacione com os judeus, como povo e como seres humanos desde sempre perseguidos, me comove de tal forma que nem a psicologia consegue explicar. Vivo perto de um apeadeiro de comboio e nos meses que se seguiram ao meu "regresso" a casa, depois de um exílio hospitalar muito doloroso, o pior de suportar eram as noites: o medo , o terror do som dos comboios que eu via carregados de judeus , a chamarem por mim a fim de não serem conduzidos à morte..
Enfim são outras histórias...mas esta história da Madame Levy "mexeu" comigo ... e só tenho uma expressão: A sua vida é magnífica.
Esteja atenta à cx. do correio!

Um beijo e parabéns!

bettips disse...

Só tu Teresa, com esses laços que te ligam a tudo, à frente e atrás, conseguias dar uma tal vívida imagem! Gostei de conhecer, as duas resistentes, tão próximas e tão diferentes. Exemplar...hoje é como se as comemorasses, na tua memória que resiste. Bjinho

Luis Eme disse...

Mais uma bonita história dos teus dias de Lisboa, Teresa...

Titas disse...

Uma experiência de vida impressionante. E não me refiro apenas à Madame Levy.

Alexandre disse...

Isto é que eu chamo histórias de vida. E pensamos nós às vezes que levamos uma vida muito agitada, muito complicada... nada em comparação com a vida que essas pessoas levaram, essas fizeram a história e fazem parte da história!

Trouxeste-nos um pedaço da tua vida - e da vida da «Madame» - fantástica!!! Obrigado por artilhares connosco estes tesouros.

Beijinhos!!!! Regressa depressa!!!

MJ disse...

Bom dia, querida Teresa:-)

Consegui "ver" a Madame. :-)

Tens esse dom. :-) As tuas descrições são tão pefeitas que é impossível não imaginarmos as pessoas e os locais que descreves. :-)

Vida cheia e, ao mesmo tempo, vazia, a desta mulher. Cheia de vivências, recordações mas vazia de calor humano.
E a morte em solidão... deve ser bem mais penosa :-(

Ainda bem que lhe deste algum do teu carinho. :-)

Ainda bem que a relembraste aqui... :-)

Um beijo grande*

ASPÁSIA disse...

OLA TERESA

MAIS UMA HISTÓRIA DE VIDAS QUE PASSARAM E COM A TUA SE CRUZARAM NALGUNS MOMENTOS DE AMIZADE OU PELO MENOS ALGUM AFECTO...
NO CASO DUAS MULHERES DE GRANDE FORÇA - TALVEZ POR ISSO MESMO TE TENHAM ATRAÍDO POR ALGUMA IDENTIFICAÇÃO CTG. MESMA... - E PASSADO DRAMÁTICO, INCL. A TORTURA DA TUA ANTIGA PROFESSORA!

ASPÁSIA disse...

VOU PUBLICANDO PQ. ESTA NETCABO NAO ANDA NADA BOA E JA HOJE PERDI UM COMMENT GRANDE NOUTRO BLOG...

LEVY - UM NOME TIPICAMENTE JUDEU, DE FACTO! A TRIBO DE LEVI, OS LEVITAS...

PENSO Q NAO FOSSE POR MOTIVOS IMPERIOSOS DA TUA PROPRIA VIDA AINDA TERIAS FEITO MAIS ALGUMA COMPANHIA à MADAME... MAS AINDA ASSIM O TEMPO PASSADO COM ELA E EM QUE LHE ALIVIASTE A SOLIDÕA E AS TÃO TRÁGIACS RECORDAÇÕES DO SEU PASSADO, JÁ FOI BOM PARA ELA E PARA TI...

ÉS UMA SOLIDÁRIA, AMIGA... AINDA BEM QUE EU PRÓPRIA JÁ TIVE OPORTUNUDADE DE SENTIR ISSO AO VIVO!

UM OPTIMO F D S AÍ PELA INVICTA...
DECERTO TE VAIS DIVERTIR, ESTAR COM PESSOAS BONITAS E TRAZER QUEM SABE NOVAS HISTORIAS PARA UM DIA AQUI CONTARES!!!

UM GRANDE BEIJO,

LEONOR

M. disse...

Tão bonita esta tua história! Tantas vidas que ninguém conhece, assim como a solidão dos outros. Ainda bem que as partilhas connosco.

LUIS MILHANO (Lumife) disse...

Consegues "mexer" connosco com a descrição das tuas personagens...

Beijo


Estou contando contigo no 2º ENCONTRO DE BLOGS EM ALVITO

o alquimista disse...

Esplendido post...história cheia de humanidades...

Um beijinho Teresa

Aldina Duarte disse...

Que bonita história e que sorte ter a oportunidade de estar tão pero de alguém assim!

Obrigada e até sempre!

António Melenas disse...

Bonita história esta das duas madames. Das figuras que ultimamente aqui fizeste desfilar, estas são as únicas que não conheci. Também não admira, residente suburbano que era, só conhecia bem o sítio onde trabalhava, isto é à volta da estação do Rossio.
Lewy? tem graça que tenho um amigo Maurício Lewy que mora na Fontes Pereira de Melo. Seria a mãe dele?
Um beijo

DE-PROPOSITO disse...

Um texto interessante, assim como outros que tens publicados e nos obrigam a meditar.
fica bem.
E a felicidade juntinho de ti.
Manuel

Lia disse...

A única madame que conheci foi a minha professora de ballet, e ela era uma mulher de ferro...

Gosto imenso da riqueza da tua escrita.

Beijinhos

Licínia Quitério disse...

São belas/tristes histórias de heroínas anónimas as que aqui contas.
Lembro uma frase de um livro de Maria Judite de Carvalho: "Tanta gente, Mariana! E nós tão sós."

Beijinho, Teresa.

Flôr disse...

Andei de salto em salto e ainda bem que cheguei até aqui.

Gostei muito do que li. Escrita arrebatadora que me faz voltar.
Parabéns.

Teresa Durães disse...

A Bettips chamou-me a atenção para este post. Conheci em tempos, há cerca de sete anos atrás, no jardim da estrela, uma senhora mais ou menos assim. Trocávamos palavras sobre livros e cheguei a emprestar livros, inclusive um manuscrito que escrevi.

Conheci-a porque estava a ler Erich Maria Remark e eu Daphine Du Maurier. Disse-lhe que era o meu autor preferido e a minha, o autor dela.

Era judia. Mas tinha a marca de um campo. Foi a única coisa que soube acerca deste assunto.

Levava todo o seu tempo a ler e quando chegava conversávamos. Não sei onde morava, deixei de a ver.