domingo, fevereiro 25, 2007


O DIDON
Comecei a trabalhar como bancária aos 17 anos, em plena época que a mini-saia era o furor máximo nas meninas, e arregalar de olho nos homens.
Como eu não era nada de deitar fora, ouvia piropos e recebia olhares de desejo com bastante frequência. Entre esses mirrones incluía-se o Didon, velho cauteleiro, que do alto do seu 1,58, derramava um olhar líauido, de evidente abuso de álcool, sobre as minhas pernas, sem contudo, nunca ter ousado dizer nada.
Trabalhava eu no r/c da Rua dos Sapateiros , no BPA, e o Didon ia amiúde até ao balcão para nos vender cautelas.
Nada disto teria nenhuma graça ou algo de especial, se não fosse o facto de ele também ser conhecido pelo Tenor, por entoar árias de Opera com uma voz estrondosa e afinada, que dificilmente pareceria possível sair daquele corpo franzino, tapado por um fato cinzento que brilhava de coçado, com a sua baixa estatura, onde apenas se destacavam a vivacidade do olhar, nuns olhos raiados por uma vida de muitos anos de dificuldades, e noites possivelmente mal dormidas, saber-se-ia lá onde, o sorriso maroto, mas nunca de homem vulgar, que mantinha aberto no rosto, guarnecido por uma cabeleira extremamente fina de fios grisalhos.
Ninguém jamais lhe conseguiu arrancar onde habitava e qualquer história da sua vida, mas a sua imagem permaneceu-me bem viva até aos dias de hoje, pois era extraordinário como papagueava ora o Barbeiro de Sevilha, ora a Traviata, sua ária preferida, usando sons que se aproximavam aos idiomas das mesmas, mas que eram completamente inventados, pois nunca aprendera as letras, nem sabia nenhuma língua estrangeira.
E era fácil que ele cantasse, essas, e outras árias, bastava dar-lhe uns trocos para ir beber o carioca de limão, bebida que passou a consumir, quando se divorciou dos copos de tinto, mas que de uma forma muito singular o deixavam igualmente um pouco toldado, ao ponto de imediato começar a entoar o seu canto.
Sempre me fez espécie o nome que ostentava, mais alcunha do que nome próprio certamente, mas mesmo que insistíssemos em saber o seu verdadeiro nome, ou fosse o que fosse sobre a sua vida, respondia sistematicamente: Didon chega!
Um dia estava no café, a beber a minha bica, quando ele entrou, e pediu o seu carioca de limão. Foi então que descobri que o mesmo não era a bebida inocente que ele nos fazia crer, pois levava um temperozito de bagaço, o que provocava que ao cabo dos vários que ia bebendo ao longo do dia, lá pelas 6 da tarde, os seus sapatos rotos, donde os mindinhos já quase saltavam, fossem palco de bailado um pouco irregular daqueles pés cansados de palmilhar a cidade.
Teresa David-foto da baixa por mim tirada

16 comentários:

ASPÁSIA disse...

OLA TERESA

VENHO LÁ DE BAIXO DO CARLOS DOS JORNAIS...

TERÁS TU CONHECIDO MEU PAI NO ANTIGO BANCO DA AGRICULTURA, DEPOIS UNIAO DE BANCOS PORTUGUESES NA RUA AUGUSTA?
MEU PAI FOI LA CHEFE DA SECÇÃO DE TITULOS E SUBDIRECTOR ATE 1983 OU 1986.

QTO A FIGURAS TIPICAS, MAIS UMA BELA HIST+ORIA. ESCREVES BELISSIMAMENTE AMIGA. N´S SENTIMO-NOS A VER ESTES PERSONAGENS.

QTO A CAUTELEIROS, MEU PAI SÓ SE LEMBRA DE UM Q NÃO DEVIA SER ESTE. ERA "O CAUTELEIRO FARDADO".

MEU PAI LEMBRE-SE É DE UMA SENHORA NOS CAFÉS DO CHIADO, QUE FUMAVA E ERA CONHECIDA PELA "BERTA DO MONÓCULO" PQ. USAVA UM. UMA VEZ CONVIDOU MEU PAI PARA IR ACOMPANHÁ-LA A CASA MAS MEU PAI DECLINOU ESSE CONVITE DIZENDO "HOJE NÃO". ISTO PASSOU-SE NUM CAFÉ A MEIO DA RUA DO CARMO DO LADO DIREITO DE Q SUBIA, E ONDE HAVIA UMS QUADROS MUITO BONS Q DEPOIS FORAM RETIRADOS.

CONTINUAÇÃO DE BOAS HISTÓRIAS!
BJINHOS

O TEU MAIL É TERESADAVID52@HOTMAIL.COM ???
CONFIRMA POR FAVOR, FICOU LA PARA TRAS JA NAO SEI EM QUE COMMENT NUM DOS MEUS BLOGS. OBRIGADA.

ASPÁSIA disse...

AFINAL MEU PAI REFORMOU-SE EM 1979, COM 65 ANOS.

LUIS MILHANO (Lumife) disse...

O REGRESSO

Os amigos insistiram no regresso do “BEJA”.

O desejo íntimo também era grande…

Porque não dar vida de novo a este projecto?

Além das notícias do Alentejo voltamos a ter outros

temas interessantes e sempre a lembrança dos

bons Poetas Alentejanos e não só.

Assim decidimos voltar e esperar o bom acolhimento

de sempre dos Amigos que aqui encontrei e dos

novos que porventura nos visitem.

Abraços amigos

Helena Velho disse...

Olá Teresa David

A Nanocas é a Aspásia e a Helena sou eu..enfim cousas de gente desinformada...
Os seus quase contos são uma delícia...fazem-me lembrar o meu pai e os engraxadores que se reuniam ao domingo , na baixa portuense, em frente ao Café Embaixador( que era lindíssimo e hoje é mais um american nightmare-McDonald+s).Havia um mto.agreste que , sempre com a beata no canto da boca ,chamava a clientela.Sempre que nos aproximavamos( eu devia ter uns 6 , 7 anos) virava-se para o meu e dizia: é pra engraxar, Sôr Inginheiro?O meu pai acedia e logo de seguida começava a sua ladaínha que acabava impreterivelmente desta forma ...e um cigarrinho,num têm que deia??? Não fumo cigarros mas tem aqui um charutinho, está bem? AH! sinhor inginheiro bocê é mesmo um tipo purreiro..
parece uma estupidez, mas casei-me, em 2ª núpcias( é linda esta expressão, não é??) c/um engº de profissão e sempre que alguém o chama evoco o meu pai, que já não vive entre nós.


Até já...

Sabe que tb já fui bancária( fraquita e sempre na drh ou lá como lhe chamam agora) no ex- BFE???

avelana disse...

quotidianos lisboetas ou de um outro qualq local ...

Não tenho gatos, sempre tive cães. mas sempre , sempre me aparece um gato preto para dar de comer. Em diversos sitios por onde passei, seja casas seja local de trabalho ele surge sempre , gato de rua abandonado que se cruza por mim e eu dou-lhe de comer... Na semana passada , estive uns dias fora em casa de familiares - olhando pela janela vejo um gato preto saltar o muro e atravessar o quintal, sem mesmo se importar com o cão.
gostei deste espaço. Beijinhos

Alexandre disse...

Outra história linda, tanto mais que a Baixa de Lisboa foi mágica para mim durante muitos anos - agora infelizmente está muito diferente...

Teresa, se puderes envia-me de novo o teu e-mail agora para:

alex.gandum@gmail.com

pois ao descativarem-me a a outra conta perdi todos os contactos. Obrigado. Um beijinho e boa semana!

Alexandre.

Marta Vinhais disse...

Olá, acho que todos nós encontramos personagens tão interessantes como este - tornam-se especiais, identificam-se com a cidade e tornam-a mais rica.
Gostei muito - obrigada pela partilha.
Beijos e abraços
Marta

M. disse...

Mais uma história deliciosa. Venham mais!

M. disse...

Voltei para te dizer que achei a fotografia muito bonita.

Zé-Viajante disse...

Esperteza do Didon. E se calhar era feliz assim...
Gostei

bettips disse...

Afinal, tinhas tanto encantamento no tua caixinha de memórias! Que bom saber-te, como eras e como olhavas. Bjinho linda

António Melenas disse...

Mais um episódio da baixa lisboeta. contado com graça e leveza. AS figuras que a cidade produz.
E Moscavide, onde eu vivia em rapaz, também havia um bêbedo, que tinha Mania que era o Tino Rossi ( e assim lhe chamavam que atroava as noite da vila com as suas árias. Só que cantava mal como o diabo e era feio que nem uma noite de trovoada
Um abraço
PS.
Acabei de pôr uma nova história no meu blogue: Escritos Outonais

Cusco disse...

"De vender a sorte grande
Confesso não tenho pena
Que a sorte ande ou desande
Eu tenho sempre a pequena"

(A. ALEIXO)

Parecido com um cauteleiro que eu conheço, só que não bebe carioca de limão com bagaço mas sim bagaço com carioca de limão.
Textos muito bons..gosto muito deste género de escrita.

Até breve
SE DEUS QUISER

Diafragma disse...

Estas tuas histórias da Baixa são giríssimas, e ajudam a relembrar a história de Lisboa.
Penso que deverias coligi-las calmamente, e abordar alguém da CML para uma eventual colectânea.

Talvez esta não seja a melhor altura :)) mas acho que vale a pena tentar.

Eremit@ disse...

+ um belo retato bem vivo. E pelo k vi tenho mtº k ler para me por em dia. Isso é k vai uma produção....
Boa. É o k vale.
Bj
Luz e paz

Unknown disse...

Foi com muita atenção que li a história da vida do saudoso DIDON.
Aquilo que narras é totalmente a verdade daquele homem, a quem comprei muitas vezes o jornal e as cautelas da SCML.
Como bancário que também fui, diáriamente no Rossio lá aparecia o DIDON, cantando a sua "opera".
Continua a contar as histórias da altura.