terça-feira, fevereiro 20, 2007


O SEMPRE NOIVO OU PINTOR DA NOITE
Nunca uma personagem se me manteve tão nítida na memória como o sempre noivo, ou pintor da noite, alcunhas que tinha, e lhe escondiam o verdadeiro nome, que era Arnaldo.
Embora fosse homem de 1,75m, pareceu-me um gigante, na primeira vez que o vi, nas suas deambulações diárias, pois eu não teria, nessa altura, mais de 10 anos.
Quando deparei com aquela figura de tez lívida, vestida de fraque, sapatos de verniz reluzentes, cabelo repuxado para trás com brilhantina, que lhe dava um tom negro asa de corvo, já com evidentes entradas, cara esfíngica, onde nunca foi possível vislumbrar um sorriso, camisa de uma alvura imaculada, que ainda realçava mais a sua palidez, e segundo constava, seria sua mãe que a engomava para se manter isenta de vincos, com aquele ar de ter sido acabada de comprar, fiquei embasbacada.
Nas mãos o bouquet de rosas brancas.
Começava a sua caminhada diária no cimo do Chiado, entrando na Brasileira, local que já eu frequentava com meu pai, e tive o prazer de privar com o Almada Negreiros e José Abel Manta, que se sentavam invariávelmente na mesa mais próxima da porta de entrada, onde mantinham um diálogo irregular, pois o Almada era de poucas falas, cerrando a cara de castanha pilada, encimada pela boina basca, que lhe tapava os cabelos grisalhos, enquanto o Manta, mais falador, relatava acontecimentos, com acutilância e bom gosto.
Á sua entrada erguia-se um coro em surdina, quase em uníssono, que dizia entre dentes:
LÁ VEM ELE!!!!
E o noivo, sempre com passo apressado, irrompia por ali adentro, ia até ao fundo da sala, sempre vociferando palavras ininteligíveis, e na mesma pressa voltava para trás para continuar o seu caminho, sempre a falar alto, quase a rebolar pela Chiado abaixo até ao Rossio, onde iria entrar no Nicola para fazer exactamente o mesmo ritual.
Com a curiosidade típica da minha idade, aquele comportamento bizarro, provocou-me tal curiosidade, que amiúde o seguia em todo o seu percurso, discretamente, pois temia que descobrisse a minha espionagem, e me agredisse, na tentativa desesperada de entender as palavras doridas lançadas ao vento em decibéis de amargura.
De noite ninguém jamais o viu, pois ficava sempre em casa a pintar os seus óleos da cidade, todos com luz nocturna, e que sempre me pareceram versões escuras das aguarelas do Carlos Botelho.
Tinham qualidade, e várias exposições fizeram da sua obra.
Até que um dia alguém finalmente me explicou:
Sabes, ele estava para casar, e a noiva morreu dias antes do casamento. Ele amava-a tão intensamente que enlouqueceu!
Daí aquela voz de revolta e irrequietude que lhe ficou até ao fim dos seus dias.
Teresa David- foto de T.

22 comentários:

António Melenas disse...

Que bela descrição! Retratas exactamente a figura do "Pintor da noite" ou "Senpre noivo" que, também eu, por ter passsado praticamente toda a minha vida activa entre a Baixa e o Chiado, tantas vezes o encontrei. Para além do realismo do retrato,faze-lo, de uma forma literária muito interesante.
As tuas recordações, reportando-se aos tempos da infância são, obviamente, mais impressivas, dos que as minhs que o conheci já em adulto.
Mas quem frequentava a baixa, todos o conheciam. Era uma figura que que não deixava ninguém indiferente
um Beijo

Paúl dos Patudos disse...

Que história bonita mas muito triste. Da forma como a contaste quase deu para ver tal personagem.
Eu não conheci, nunca vivi em Lisboa.
Ele perdeu a sua alma gemea , sem dúvida.
bjos
Ana Paula

bettips disse...

Uma história de amor belíssima. E delicadamente contada. Porque me arrepio? Bjinho

Unknown disse...

Quantas vezes o povo define as atitudes de um desconhecido, sem tentar saber as origens desse porquê!

Soubeste colocar as palavras de uma tal maneira que se poder ler sem qualquer aborrecimento, antes pelo contrário.

Beijo

ZezinhoMota

Marta Vinhais disse...

São histórias destas que marcam a cidade e a nossa própria vida.
O tempo para ele parou no dia em que a noiva morreu e talvez tenha sido feliz assim.
Gostei muito do texto. Parabéns
Beijos e abraços
Marta

Aldina Duarte disse...

Fui uma vez abordada pelo Sr. Noivo do Chiado, com uma delicadeza extrema recebi das suas mãos uma rosa branca e um aceno de gratidão acompanhado pelo seu chapéu de feltro!

Até sempre

MJ disse...

Deliciosa a forma como nos "falas" deste "noivo".

Descrição perfeita que nos faz imaginar, sem qualquer dificuldade, essa figura surreal.

"Ele amava-a tão intensamente que enlouqueceu!"
Senti um arrepio quando aqui cheguei...

Muito bonito. Tocante.

Um beijo, minha querida*

Conceição Paulino disse...

um belíssimo registo amiga.
pinta e dá vida à pessoa agora tornada personagem para nós.
E bela foto de Lxª.
Bjs
Luz e paz

M. disse...

Lembro-me vagamente deste personagem de quem falas com tanta sensibilidade. Também gostei desta tua história.

Diafragma disse...

Lindíssima história, e belíssima fotografia.
Parabéns Teresa!

Chapa disse...

Gostei da história e da foto também. Não se pode querer mais de um post.

Titas disse...

o "sempre-noivo" !!!!!!!! .......

A mim, contaram-me que a noiva lhe morrera na manhã do casamento.

O medo que ele me fazia!

Apenas te posso dizer, por me trazeres tais recordações, OBRIGADA, MUITO OBRIGADA, Teresa

Paúl dos Patudos disse...

Passei para te desejar um bom fim de semana e um convite para te juntares na modesta homenagem que estou a fazer no meu paúl dos patudos
bjos
Ana Paula

o alquimista disse...

Uma bela historia de amor...tambem sou pintor...pinto a noite e o infinito e até anjos negros...mas pinto sempre o louvou gerado pelo puro amor...


Doe beijo

Fragmentos Betty Martins disse...

Toca-se - cheira-se - vive-se a personagem

Parabéns por este magnifico texto

Beijinhos com carinho
BomFsemana

por um fio disse...

Comovente!
Gostei muito da forma como a contas...
Bj

ASPÁSIA disse...

AS HISTÓRIAS DE AMOR SÃO SEMPRE AS MINHAS "SEMPRE NOIVAS" PREFERIDAS... ESTA É SIMULTANEAMENTE COMOVENTE E ALGO CÓMICA... PARA QUEM A LÊ, CLARO...
NÃO FOI A NÓS Q O NOIVO MORREU NO DIA DO CASAMENTO!

QTO Q ESTE SEMPRE NOIVO. O MEU PAI OUVIU FALAR DELE MAS NÃO SE LEMBRA DE O TER VISTO-

LEMBRA-SE É DE UM SENHOR Q ANDAVA NABAIXA SEMPRE COM UM SACO COM QUADROS PINTADOS. NÃO SEI SE SERIA O MESMO.

BJS

Anónimo disse...

Olá, Teresa, daqui fala-lhe uma homónima a quem muita curiosidade suscitou esta história do sempre noivo. Por acaso acha que consegue dar-me mais informações acerca deste senhor? Sou estudante de Jornalismo e estava interessada em fazer um trabalho sobre ele. Ando em busca de toda a informação possível acerca de Arnaldo Ferreira.

Pode entrar em contacto comigo através do mail que lhe deixo.
Agradeço qualquer informação que me possa dar, gostava até de a entrevistar, e fazer-lhe algumas perguntas sobre essa Lisboa que nos mostra.

Cumprimentos,
Teresa Sequeira.

Anónimo disse...

É verdade, não lhe deixe o meu mail! é seguinte peggysue9@gmail.com

Mais uma vez,
Cumprimentos!

Unknown disse...

Ola cara Teresa David
Estimo muito a sua descrição sobre o misterioso Arnaldo Ferreira, o qual me tem intrigado já há alguns anos. Acabei de encontrar este titulo sobre o pintor Arnaldo no seu blog quando fiz uma busca na net, porque voltei a lembrar-me do mesmo pelas mesmas razões que faz a Teresa trazer este assunto on-line: a falta de informação sobre o mesmo.
Eu tenho 32 anos agora e o Arnaldo não é da minha geração mas, surpreendentemente, o estilo artistico dele me cativou e em parte foi um ponto de ligação numa determinada técnica que uso nas minhas realizações plásticas.
Eu comecei a experimentar uma técnica de desenho á noite, com pasteis de oleo sobre folha preta, desde 1995, e neste momento tenho uma vasta colecção com a qual costumo fazer exposições. Só anos mais tarde é que vim ao conhecimento da figura de Arnaldo e dos seus nocturnos em oleo em tela e em aguarelas, quando me controntei com alguns dos seus trabalhos em catálogo de leilão da leiloeira Cabral Moncada. Fiquei naturalmente fascinado pelo facto de em Lisboa, decadas antes, já ter havido um artista com a mesma paixão que eu, em retratar ambientes nocturnos para um suporte bidimensional.
Os meus trabalhos são feitos in-loco, onde vou com um prancheta e com os pasteis para um determinado local e desenho lá mesmo a paisagem. Em relação ao Arnaldo, não sei exactamente como ele fazia, mas segundo me contaram por alto ele também pintaria de noite no próprio local ... acham que assim seria? Existe alguém que o tenha visto em acção de noite?

Unknown disse...

Ola cara Teresa David
Estimo muito a sua descrição sobre o misterioso Arnaldo Ferreira, o qual me tem intrigado já há alguns anos. Acabei de encontrar este titulo sobre o pintor Arnaldo no seu blog quando fiz uma busca na net, porque voltei a lembrar-me do mesmo pelas mesmas razões que faz a Teresa trazer este assunto on-line: a falta de informação sobre o mesmo.
Eu tenho 32 anos agora e o Arnaldo não é da minha geração mas, surpreendentemente, o estilo artistico dele me cativou e em parte foi um ponto de ligação numa determinada técnica que uso nas minhas realizações plásticas.
Eu comecei a experimentar uma técnica de desenho á noite, com pasteis de oleo sobre folha preta, desde 1995, e neste momento tenho uma vasta colecção com a qual costumo fazer exposições. Só anos mais tarde é que vim ao conhecimento da figura de Arnaldo e dos seus nocturnos em oleo em tela e em aguarelas, quando me controntei com alguns dos seus trabalhos em catálogo de leilão da leiloeira Cabral Moncada. Fiquei naturalmente fascinado pelo facto de em Lisboa, decadas antes, já ter havido um artista com a mesma paixão que eu, em retratar ambientes nocturnos para um suporte bidimensional.
Os meus trabalhos são feitos in-loco, onde vou com um prancheta e com os pasteis para um determinado local e desenho lá mesmo a paisagem que quero captar. Em relação ao Arnaldo, não sei exactamente como ele fazia, mas segundo me contaram por alto ele também pintaria de noite no próprio local ... acham que assim seria? Existe alguém que o tenha visto em acção de noite?
De qualquer modo é interessante a interpretação plástica de Arnaldo F. e sem dúvida a sua tecnica é uma referência incontornável á minha tecnica das intituladas "Paisagens Nocturnas". Podem ver estes desenhos por mim realizados neste link:

http://picasaweb.google.com/miguelalexgarcia/ExposicaoVirtualPaisagensNocturnas

Passados anos, continuo com o mesmo sentimento que a Teresa nos deixa, de um vazio de informação sobre o fascimante Arnaldo Ferreira e as suas deambulações nocturnas, o qual eu acho que merecia destaque um destes dias numa exposição retrospectiva da sua vida e obra, ou algo do género, mas de facto a excassez de informação sobre o mesmo é vasta.
Há tempos encontrei um pequeno artigo online sobre Arnaldo F. de um jornal ou revista, mas igualmente pouco mais se diz sobre o pintor que que aqui se expõe nste blog.
Da minha parte continuarei a procurar mais dados sobre Arnaldo e vos passarei tudo o que achar interessante para esta "investigação".
Parabéns pelo site e pelo blog.

Miguel Garcia

norte/sul disse...

D. Teresa David, tenho 73 anos e comecei a trabalhar no Poço do Borratem com 13 anos logo sessenta anos vão passados e, na minha memória ainda vejo a figura que tão exatamente descreveu, é uma figura que volta e meia me vem á memória nos precisos termos que o descreveu. Obrigado pela informação ligada á pintura que desconhecia, mas, sabia de questão do desgosto de amor. Cumprimentos, Didio Antunes