segunda-feira, fevereiro 06, 2006



O HOMEM SEM DENTES

ou mais uma das minhas histórias líquidas

Vinha meia adormecida no comboío, quando me veio à lembrança uma personagem que reencontrei, passados trinta anos, imagem de alguém que como relâmpago, ou flash, apesar de morar bem perto de mim nunca mais revi, após o fugaz encontro que passo a contar:

Estava eu em mais uma noite líquida, no mesmo bar onde encontrara "o corneta" da outra história, quando vejo subir a escada fronteira a mim, um homem de cabelo negro asa de corvo, feições correctas, mas faces encovadas pela magreza e o mirrar fruto dos anos. O azul violeta dos olhos estava rodeado de uma auréola avermelhada denunciadora de consumo excessivo de álcool.

Quedou-se ao meu lado, sem me ligar nenhuma importância, enquanto encetava conversa com o gerente sobre qualquer assunto que não me dei ao trabalho de ouvir, pois a minha memória tinha começado a trabalhar, trazendo-me dum passado longínquo aquele rosto tão próximo de mim físicamente, mas alterado pelo tempo. E foi de repente que a imagem do passado surgiu. Rememorei um rapaz elegante de cabelo negro e olhos azuis, que esperava colegas minhas na porta do colégio. Revi os placards com a sua imagem agigantada, em anúncios de perfumes ou roupas. Lembrei-me dele ainda no Monte Carlo ou no Convés, junto às tertúlias de actores do Teatro Monumental. Olhei-o na lembrança do écran da televisão em papéis secundários de filmes, ou em primeiro plano de anúncios.

E não resisti, fixei-o intensamente até atrair o seu olhar e disse: Lembro-me muito bem de si! Habitava na minha zona, a Av. de Roma, e frequentava os mesmos sítios que eu. Só que já passaram 30 anos desde esse tempo, e como o conhecia só de vista, certamente não se lembrará de mim!

Olhou-me espantado, e foi então que verifiquei que a sua boca estava completamente desdentada, o que me provocou curiosidade, pois todo o seu aspecto cuidado, malgrado a cara aparentando um notório caso de alcoolismo, não era consonante com tal desleixo. Sim, porque nos tempos que correm, só por desleixo, falta de dinheiro, que não parecia ser o caso, ou qualquer outra aberração, alguém deliberadamente se passeia desdentado!

Começámos à conversa e uma hora depois já tínhamos encontrado afinidades e tanta gente conhecida em comum que se justificava continuar a dialogar.

Mais um copo noutro Bar, e senti-me à vontade para lhe fazer a pergunta que me estrangulava a garganta: Porque é que não tens dentes?

Por uma questão de atitude! - respondeu.

Atitude?

Sim! A minha beleza física levou-me a ser perseguido tanto por homens como mulheres grande parte da minha vida. Ao contrário do que possas pensar, não são só as mulheres belas que são vítimas de assédio. Também um homem como eu fui, passa por terríveis situações para poder afirmar o seu talento, dado ser sistematicamente tratado em primeiro lugar como um objecto decorativo, e só depois, e meramente por pessoas inteligentes, como um ser capaz de pensar. E o que eu queria mesmo era ser actor dramático, não mero figurante.

Mas o que é que isso tem a ver com o facto de estares dendentado? - insisti.

Muito! Perdi por volta dos trinta e poucos os dentes todos, e como qualquer outra pessoa mandei fazer uma prótese. Nunca a usei, pois de repente ao olhar-me ao espelho percebi que encontrara a fórmula para resolver o meu problema. Sem dentes as pessoas que se aproximavam de mim era mesmo devido ao meu "eu" mais profundo lhes interessar, dado que a falta de dentes, óbviamente, me retirava grande parte dos meus atractivos físicos. Por outro lado, nessa altura também elegi como companhia preferida a bebida, tendo passado a comer pouco e a beber muito, pelo que os dentes passaram a não ser tão necessários.

Embora habitualmente seja faladora, calei-me, ficando a flutuar entre as palavras acabadas de ouvir e a lembrança daquele rapaz lindo, que lembrava sobremaneira o Alain Delon, que todas nós não resístiamos a perseguir com o olhar, quando por nós passava, e o homem de cinquenta anos, desdentado, olheirento, escavacado, com o qual conversei e bebi copos até às nove da manhã duma madrugada tépida de Primavera.

Teresa David quadro de Seurat

5 comentários:

Conceição Paulino disse...

As histórias das vidas são terríveis e demolidoras. Como esta.
Bjs de luz e paz e um muuiiiitooooo Bom dia ;)

Raquel Vasconcelos disse...

Acho que fiquei... quase tão impressionada quanto quando vi o filme "Ondas de Paixão", em que se saía de lá, com a alma colada ao vazio...

Conceição Paulino disse...

Bjs e bom restito de semana

Su disse...

tanta vida....
gostei de ler.te
jocas maradas

Isabel José António disse...

Que estranho e comovente personagem!

Valeu a pena contar esta história...

Isabel