segunda-feira, agosto 04, 2008



O POETA E A ACTRIZ


Ao ver no Biography Channel uma entrevista com a Eunice Munoz não pude deixar de me lembrar das vezes que com ela estive, ou nos bastidores do Teatro Nacional D. Maria II ou em Almada quando visitava o Teatro.
O meu companheiro foi muito mais próximo dela do que eu que me limitei a fortuitas conversas de banalidades e particularmente de filhos, assunto recorrente na sua conversa.
Mas sempre senti a sensação que era uma actriz 24 horas por dia, compondo uma personagem a cada momento.
No entanto, falo aqui dela mais por me ter lembrado do seu marido António Barahona, poeta do grupo do café Gelo, a par do Cesariny, António Maria Lisboa, Raul Leal, Herberto Hélder, e tantos outros entre os quais o pai do meu filho. Conheci-o pessoalmente mas nunca troquei uma palavra com ele, talvez por me sentir intimidada com o seu aspecto reservado ou porque não saberia do que haveria de falar. Daí ter estado sentada a seu lado algumas vezes na tertúlia do Largo da Misericórdia, ouvindo os outros sem nada dizer.
Conheço a obra dele e gosto particularmente do poema que fez dedicado á sua mulher da altura, a Eunice, que transcrevo para ajuizarem do seu talento e qualidade.
Curiosamente o grupo do “Café Gelo” tornou-se pouco conhecido, salvo de uma elite de gente ligada á cultura e jovens universitários que estudam o surrealismo como forma de rebeldia social.
Mas, ao fim ao cabo, o que me levou a pensar escrever este texto foi mais exactamente descrever uma situação curiosa passada após a ida á Índia da Eunice com o Barahona. Ela tinha-se convertido por paixão ao seu amado também ao islamismo, como ele tinha feito em 1975 e vestia-se com trajes indianos, lembro-me de a ver a descer o Chiado dessa forma vestida de mão dada com o companheiro.
Segundo me contava o Virgílio a Eunice quando recebia visitas, pelo menos nessa altura, fazia sempre fondue. Entre um garfo na caçarola e outro, o Virgílio perguntou á Eunice se tinha gostado de estar na Índia. Antes disso, o Barahona tinha acaloradamente falado de tudo o que tinham vivido e conhecido nesse País que era a sua paixão do momento.
A Eunice com aquela expressão contida com que sempre fala numa pequena frase foi eloquente, quando afirmou: bem, as crianças tinham tantas moscas nos olhos e na boca!

Em cima, da esquerda para a direita: Lima de Freitas, Mário Henrique Leiria, Eunice Muñoz, Fernando Alves dos Santos e Mário Cesariny de Vasconcelos. No plano inferior, da esquerda para a direita: Arthur do Cruzeiro Seixas, António Barahona e Diogo Caldeira . Foto de 1978.


PÁSSARO-LYRA DE ANTÓNIO BARAHONA



Contemplo Eunice voltada para a luz olhos nos olhos do Solcomo nenhuma águia até hoje se atreveu





E orquídea de altitude demiurgaigual a Beatriz no diadema aos lábios de perguntas a resposta silencia amorosa e lucilante:
Já não pisas a Terra, filho d'Alighieri





Vastas orbes de Anjos sexuados em amor sob os plátanos de lenda adormecem aos pares no leve vácuo





Ó mulher que eu exorto e me confunde sem teu múrmuro, doce consentimento na paixão reesculpida tantas vezes!





A pedra renasceu do Invisível e o inédito escopro a atacá-la: islâmico destino sem mudança,infalível, dirigido, matemático

O Paraíso na Terra é este quarto:céu de fogo, Rosa branca, Rosa mística,hierarquia de pétalas e espírito,objectos femininos sobre as nuvens





Uma aurora boreal, águas de riso,cotovias nas vergônteas, extenso prado e um luar de serena palidez nas antigas pupilas do piano





Paraíso particular ou ilha estanque furtada d'além mar, onde se abrir alcova de nítido crepúsculo em gravura de tons ácidos em áscua





É meio-dia. São dez cantos. Eis a hora florentina da virtude e o número pitagórico da origem. Recomeço a ascensão, o êxtase inúmero





Ó dilema dos Infernos e Empíreo,duas forças na balança em equilíbrio,o desígnio da Musa é que me vence:completo subirei com gravidade





É meio-dia. São dez cantos. Eis a horada sagrada, maviosa morte álacre e Eunice vindoura tem assentoria Rosa eternamente reflorida





O amor é o rei destes lugares,o Profeta conduz a caravana,os guerreiros de Deus bebem frescura e Buda na corola da Rosa branca





com Cristo, a Mãe Geral e Gabriel,coroam a Eunice e a Beatriz De címbalos adornam as hetairase os poetas da danação meticulosa





Paraíso Prometido, minha casa sobre a rocha edificada, com raizes,a mesa onde me estudo, leio tudo,canavial de livros e poema





É meio-dia. São dez cantos. Eis a hora





Je mange Eunice em atitudes altas,na furiosa água materna, aliterado,entoando o zejel mouro espanhol Ad vitam aeternamos lábios, os gritos, o musgo da voz florido!





Oh beijos medonhos, oh ciclone-júbilo,risos potáveis na aurora fatigada,corpos conversados lado a lado exaustos,cicatrizes, pancadaria de sangue!

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Gosto desta poesia poderosa com a força das convicções e sentidos! Mas gostos não se discutem e nem todos têm esta forma de apreciar as palavras!








TERESA DAVID

16 comentários:

Paula Raposo disse...

Um poema bem poderoso, sem dúvida!! Beijos para ti e continuação de boa recuperação.

Alexandre disse...

Completíssimo post, Teresa! E interessantíssimo porque nos ensina e explica muita coisa - tive o privilégio de fotografar de muito perto a Eunice Munoz há uns meses e se fosse agora - que estou mais «descarado» - ter-lhe-ia pedido uma foto com ela.

Muitos beijinhos, Teresa! Espero que esteja tudo bem!!!

LUIS MILHANO (Lumife) disse...

Sempre que abres o teu album de recordações mostras a riqueza do que nele guardas.É história o que connosco partilhas. Obrigado.

Continuação de melhoras.

Beijos

Justine disse...

Confesso que a poesia dele é um pouco "barroca" demais para mim, mas reconheço-lhe qualidade formal e muita força.
Quanto à observação da Eunice sobre a India, é a de uma humanista.
Obrigada pelo post, fiquei a conhecer ambos bastante melhor.
Continuação de boa recuperação(pelo que me disseram, o aspecto está óptimo:)))

Luis Eme disse...

sinceramente, gostei mais das tuas palavras que do poema, Teresa...

provavelmente pela minha falta de paciência de ler o poema com olhos de ver.

bjs

Licínia Quitério disse...

Adorei a frase da Eunice. Mas está lá tanto da Índia.

Beijinho, Teresa.

O Profeta disse...

Ai quem me dera agitar o tempo
Atirar a mágoa à voragem da noite
Arrancar as raízes ao pensamento
Sentir a paz que uma lagoa acolhe


Boa férias


Mágico beijo

vieira calado disse...

Olá, amiga!
Passei para ver as novidades e deixar um beijinho.

ASPÁSIA disse...

TERESITA

GOSTEI MAIS, ASSIM COMO O LUIS M, DA TUA NARRAÇÃO DESSAS VIVÊNCIAS AINDA QUE MÃO MUITO PROFUNDAS, EM COMUM COM A ACTRIZ E O POETA.

O POEMA É UM TANTO SURREAL DE MIAS PARA O MEU GOSTO, MAS IMAGINAǺÃO E CONSTRUÇÃO CUIDADAS NÃO LHE FALTAM.

QUANTO À FRASE DA E.M., MOSTRA QUE ELA VIU COM OLHOS DE VER, O MAIS IMPORTANTE DA ÍNDIA - E DO MUNDO -... TÃO DESAMPARADO!

BJS

Templo do Giraldo disse...

http://templodogiraldo.blogspot.com/


Passem por aqui.


SAUDAÇÕES.


BOA TARDE.

Júlia Coutinho disse...

Gostei muito deste teu artigo. Bela homenagem aos artistas que enumeras e sobretudo à Eunice e ao Antonio. É bonita a historia de amor que manteve com o Antonio.
Sabes dizer-me onde foi tirada esta fotografia? Parece-me uma galeria... Já reparaste quantos já partiram deste grupo?
Como vai a tua recuperação? Vai dando noticias.

bettips disse...

As memórias que nos dás aqui enriquecem-nos sempre, dando a tua "deliciosa e ridente" perspectiva de mulher, ávida de conhecimento. Uma forma particular de ver um mundo que não conheço mas que por ti me encanta conhecer! Grata TD

Jorge P. Guedes disse...

OLÁ, TERESA!

Antes de tudo que a sua saúde esteja em melhor plano é o que mais desejo!

Depois, restar-me-á dizer-lhe que bem me recordo dessa fase da Eunice Munoz, uma mulher que respira teatro.
Confesso-lhe o meu desconhecimento sobre o grupo do "Café Gelo" enquanto tal, já que os seus diversos elementos são por demais conhecidos na área das Letras, pelo menos.
Adorei ler este relato de vivências da época e que retratam muito bem o espírito dos surrealistas portugueses.
O poema é um bom exemplo do ermetismo da sua linguagem, que apresentava, digamos, uma escrita pictórica carregada de adjectivação marcante, como fortes pinceladas no branco da tela, e o mais despojada possível de elementos considerados aliatórios do discurso.
Foi com prazer que conheci esse poema à Eunice!

Um grande abraço para si.
Jorge P.G.

Bichodeconta disse...

Primeiro que tudo parabéns Teresa, por me parecer que está de facto no bom caminho no que toca á saúde.. Depois os parabéns pelo poste tão interessante e bem construído..Vá dando noticias..um beijinho, ell

amigona avó e a neta princesa disse...

Gostei de ler Teresa! Bastante!

Desejo-te tudo de bom... beijos...

vieira calado disse...

Não conhecia o texto, embora, há muitas décadas, tenha conhecido o autor.
Obrigado