quinta-feira, abril 24, 2008

O MESTRE RELOJOEIRO

Nunca fui pessoa de ter curiosidade pela vida privada de cada um, daí acontecerem-me histórias como a que passo contar, de alguém com quem me cruzo há quase 30 anos e só no ano passado ter sabido alguns pormenores da sua vida, mesmo assim por mero acaso!
Em cinemas, peças de teatro, exposições dos meus quadros, sempre vi o Sr. Jaime, homem de estatura média, cabelo hoje todo branco, olhos vivazes de águia que tudo controlam em redor.
Sabia que ele dever-me-ia conhecer de vista de tantos eventos em que estivéramos em comum, logo, em 2001 na esplanada do Festival de Teatro de Almada, onde sempre o via, habitualmente acompanhado por um senhor da sua geração, o Sr. Jaime tem hoje setenta e tal anos, abordei-o perguntando directamente se não se recordava de mim. É certo que entre 94 e 2000 pouco frequentei os sítios de Almada, porque as pessoas com quem convivia na altura eram todas de Lisboa.
Entre o tímido e reservado balbuciou uma explicação onde dava conta da sua fraca memória, coisa que eu que não acreditei, porque quem é possuidor de um olhar arguto como ele, nunca nada lhe passa despercebido.
No entanto, este foi um despoletar de longas conversas a partir desse dia, uma vez que quando nos cruzávamos no cinema ou teatro, no final do espectáculo, me dava sempre a sua opinião afirmativa quando gostava ou aguerrida quando não. Depressa percebi que as suas opiniões eram irrefutáveis e caso também tivesse gostado limitava-me a confirmá-lo e quando ele disparava simplesmente: detestei, nem tinha a veleidade de o contradizer.
Continuei a encontrá-lo aqui e ali mas também a desconhecer completamente qual era ou teria sido a sua vida profissional ou humana. Tinha a convicção que estaria ligado á Cooperativa Piedense por aí o ter visto aquando das minhas exposições e mais nada.
No ano passado, após mais uma peça de teatro vista em comum, de uma forma contida disse-me que estaria a decorrer na Cooperativa uma sessão de fados e convidou-me a acompanhá-lo. Não sou uma incondicional amante dessa expressão musical, salvo quando as vozes me tocam as fibras sensíveis. Quando me falou que a Luísa Basto também cantaria não hesitei, porque pura e simplesmente a considero a melhor voz portuguesa no feminino e a conheço há muitos anos do Restaurante que possuía no Pragal com o marido, onde cozinhava os jantares e depois ia a correr a casa a dois passos dali para se vestir e vir deliciar-nos com a sua voz.
Antes de entrarmos no Salão onde decorria o evento, o Sr. Jaime mostrou-me a sua loja de relojoaria e ourives, um espaço exíguo onde eram visíveis na parede os relógios anos 30 e outros espalhados pela bancada.
Fiquei espantada porque desconhecia essa sua profissão, mas após pensar um segundo logo me lembrei que realmente nada sabia da sua vida.
Como adoro relógios e senti na sua forma de falar deles a paixão que o povoava, ao ponto de falar como se de filhos se tratasse, perguntei se poderia levar-lhe um relógio de mesa dos anos 20 que tinha o mecanismo completamente escavacado. Perante a sua anuência fiquei de ir num dia próximo visitar a loja com mais pormenor e levar o relógio.
A sessão de fados parecia um anacronismo porque todas as pessoas que habitavam o espaço, em quantidade tão grande que nem tive onde me sentar, me pareciam perdidas no tempo. Fui olhada com aquela curiosidade típica de quem vive em regime de gueto, onde conhece todos os que o rodeiam e qualquer “outsider” se torna alvo de curiosidade.
Pela primeira vez o Sr. Jaime se abriu um pouco comigo ao dizer que tinha passado a vida a trabalhar sem nunca se misturar muito, nem se querer imiscuir nas “tricas” alheias.
Isso fez-me logo ver o que já interiormente tinha pensado, que, apesar, de ele ser homem de uma geração em que devido ás dificuldades, mas também desinteresse, a maior parte dos habitantes desta margem se tinham remetido a uma ignorância em termos estéticos que não ultrapassavam essas sessões populares, tinha avançado culturalmente ao ponto de retirar prazer em ver peças dos maiores dramaturgos mundiais, ou filmes dos grandes realizadores de todos os tempos.
Passado algum tempo levei-lhe o relógio. Encontrei-o de lupa no olho, dobrado sobre um mecanismo de um relógio de pulso antigo. Tinha a sua irmã na loja o que era suficiente para a encher, com quem troquei algumas palavras sobre as bijutarias que faço e outras coisas de mulher, como as dores artríticas que ambas padecemos.
Com o seu ar a raiar o agressivo interrompei-a, pegou no relógio, de entranhas de fora e cheio de verdete, e disse: vou conseguir arranjá-lo!
Fiquei toda contente e perguntei quando o teria de volta.
Esperei mais de um mês até ouvir o seu vibrante tiquetaque, mas entretanto pedi-lhe se me falava um pouco da sua vida, pois me despertava a atenção ver o amor com que tratava os relógios, fazendo algo muito raro já hoje, nestes tempos digitais.
A irmã meteu o nariz para mostrar-me um enorme livro encadernado onde se via a páginas tantas a sua foto e o elogio pelo mérito de artesão na sua arte. Foi nessa altura que me apercebi ser realmente alguém tímido que dispara para manter a sua privacidade incólume, mas acabei por ver em detalhe todo o que lá dizia sobre ele.
Fiquei então a saber que nascera ali na Cova da Piedade, pertencia aos corpos sociais da Cooperativa desde os anos 60, era filho de pai marinheiro, que o levara aos 11 anos para o Alfeite para ir aprendendo as artes do mar. Falou-me de como era aquela zona nos anos 40, nos cavernames dos navios e como não acabara na marinha mas sim aos 12 anos junto dum tio por afinidade que era relojoeiro, com loja na Rua da Madalena para onde se deslocava todos os dias numa vedeta dos marinheiros do Alfeite para poupar o dinheiro do cacilheiro.
Com o tio tudo aprendeu e lhe ficou até hoje essa paixão que ainda acarinha pelos relógios, pelo meio casou e teve dois filhos.
Disse-me displicentemente que já está casado há 50 anos, mas, nunca lhe conheci a mulher, que certamente se deverá ter dedicado toda a vida á casa e criar os filhos.
O cinema desde tenra idade foi um dos seus maiores prazeres, lembrou-me o filme do Cinema Paraíso, com o qual disse se identificar, embora a mim me tivesse vindo a imagem do livro do Romeu Correia dos Bonecos de Luz, mais ajustado geograficamente á história.
Com os olhos grandes tornados enormes nomeou os filmes de acção, as dificuldades iniciais em se adaptar ao cinema neo-realista, ao Ingmar Bergman, a par de outro realizadores mais elaborados, para finalizar afirmando que hoje consegue ver de tudo sem dificuldade.
Se pensarmos que aos 11 anos estava no arsenal do Alfeite, toda a sua caminhada em prol do conhecimento foi notável, o que acabou por afastá-lo um pouco dos seus pares, que não conseguem trocar ideias sobre filmes ou peças de teatro e andar sempre só nos momentos furtivos em que fecha a porta da lojinha e vai mergulhar no mundo encantado da criatividade do qual fala com os olhos húmidos de emoção.

Teresa David-fotos minhas

29 comentários:

Luis Eme disse...

Também conheço o Jaime Soares...

de vista claro.

falei com ele duas ou três vezes, por questões ligadas à Cooperativa...

fiquei a saber um pouco mais deste senhor, bastante discreto, sem dúvida, como tanta gente da sua geração.

abraço, Teresa

M. disse...

Mais uma das tuas histórias que tanto aprecio. Gostei muito. E mostraste-lhe o que escreveste sobre ele?

bettips disse...

Tu e as tuas vidas re-contadas pelas imagens que te sugerem!
Mais um exemplo deste povo Enorme, formado na "escola da vida" e com tanto potencial em si.
Que bem aqui ficou o Sr. Jaime!
As tuas melhoras. (o relógio é liinnndo!)
Bjinhos

Marta Vinhais disse...

Gostei do teu texto; há pessoas assim, discretas e com uma vida tão cheia de amor...
Obrigada pela visita; espero que estejas melhor...
Quanto ao blog, achei que estava na altura de o "modernizar"...
Até já..
Beijos e abraços
Marta

FERNANDINHA & POEMAS disse...

Olá amiga Teresa, adorei o teu texto, belíssimo... Grata pela tua visita ao meu cantinho de Sonetos!
Bom fim de semana,
Beijinhos de carinho,
Fernandinha

Fragmentos Betty Martins disse...

querida______Teresa




histórias da vida real



______marcadas na tua vivência______tão plenas


de uma riqueza humana_____que transborda


na tua escrita_____excelente


__________...________





beijO____C____carinhO

jorge esteves disse...

Sem relógio o Tempo deixou todo o tempo para uma bela história!...

abraços!

isabel mendes ferreira disse...

Teresaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa....
que bom saber de si...


e bem....(espero).



enorme abraço.


gratooooooooooooooooooooo.



obrigada.

Bichodeconta disse...

Li com interesse a história do sr Jaime, e temos por aí tantos Srs jaimes por timide se escondem numa carapaça de onde só saiem se impelidos para tanto.. Vida riquissima , ainda por cima eu tenho a tara dos relógios.. Adoro relógios, desde sempre.. Obrigada pela magnifica história, quase biografia de alguém tão interessante e discreto.. É sempre bom ler os seus escritos, os seus saberes.. Fiquei feliz por saber das melhoras, desejo boa semana, um beijinho, ell

Conceição Paulino disse...

Bom, ao menos o comentário nos poemas ficou. Este, apesar de "bisado", sumiu.
Como é óbvio já não sei o k dizia nem como ...
O importante é que permanece a certeza de k cada ser humano é uma autêntica caixinha de surpresas, por vezes boas, muito boas OUTRAS... bom, dessas não falamos hoje aqui.
E no teu jeito de crónica dãs-nos uma pessoas com profundidade, não um siples "boneco" de gente.
E o relógio voltou a trabalhar coisa k peça assim linda merece.
Bjocas e vamos ver se tmb desaparece....
Luz e paz

Afrodite disse...

ainda que dedicado ao Senhor Jaime, detive-me na Luisa Basto: uma das vozes mais bonitas do nosso tempo.

Paúl dos Patudos disse...

Passei para te desejar as melhoras e ler a história do Sr. Jaime. Gostei bastante. Estou a terminar os meus exames por isso tenho estado um pouco ausente, mas voltarei
bjos
Ana Paula

Henriqueseis disse...

Olá Tudo bem?Como sei que gostas do meu blog, decidí avisar-te que já tenho mais uma nova História no meu blog do Mitos urbanos.Passa por lá que esta, é empolgante.

http://novos-mitos-urbanos.blogspot.com

Encontros de Almas disse...

Deixo um beijinho e os parabéns pelo blog...


beijo

Jorge P. Guedes disse...

Teresa:

Li com todaa atenção o interessante relato dessa história de vida.
Ainda bem que há, no seio do povo que não foi instruído por falta de posses na altura,homens que aprendem sozinhos ou por circunstâncias davida a gostar do que é bom e bonito.

Uma curiosidade minha: aqueles relógios de parede que estão numa das fotos estão à venda e a trabalhar?

Um abraço. Gostei muito do teu texto.
Jorge P.G.

Paula Raposo disse...

Pessoas assim, enriquecem-nos! Beijos.

Henriqueseis disse...

Olá Teresa, venho aquí apresentar o meu pedido de desculpas,pelo facto de ter aquí vindo fazer PUB,ao meu blog do mitos urbanos sem sequer comentar a tua História.Tens aquí um belo estaminé com boas fantasias para quem quer desanuviar após estes dias loucos co cuotidiano.Quanto á historia embora me pareça mesmo real fiquei sem saber se o era.Parabéns pela tua escrita e do estilo Rodrigo Guedes de Carvalho.Só me falta ler "A Casa Quieta". Parabens continua.Eu no mitos escrevo longe a longe. mas vai passando no http://men-tira.blogspot.com que tenho lá quase semanal mentiras actualizadas, e da actualidade.

LUIS MILHANO (Lumife) disse...

Conheço o Sr. Jaime Soares de vista.
Achei maravilhosa esta tua conversa.
Deve ser lida e relida.


Beijos

fc disse...

Deixei-lhe um desafio no meu blog. Se achar que deve aceitar, gostaria muito.

Boa noite!

Fragmentos Betty Martins disse...

querida________Teresa




uma




flor




um_______:))






beijO_______C_______carinhO


bFeriado/fSemana

Espaços abertos.. disse...

Uma história do real muito bem relatada,de profissões caídas em desuso,mas são nestes grandes mestres que se se encontram os maiores conhecimentos.
A visão muito relalista marcada pelo registo da vida.
Bom feriado amiga
Bjs Zita

Jorge P. Guedes disse...

Hoje, 1º de Maio, não trabalho e por isso, não comento, peço desculpa.
Apenas passo para deixar um abraço aos amigos e a todos os trabalhadores.
Bom Dia de Festa! Viva a Liberdade responsável!
SEMPRE!
QUEIRA OU NÃO QUEIRA O PAPÃO!
Jorge P.G.

Uma vez mais obrigado pelas indicações sobre o mestre relojoeiro.
Abraço.

Tozé Franco disse...

Mais uma belíssima história.
Quantaa e quantas pessoas não passam pelas nossas vidas e muitas vezes pouco sabemos delas.
Um abraço.

Bichodeconta disse...

Achei linda esta história que não resisti a ler novamente.. mando um beijinho e o desejo de bom domingo, uma flor para si Teresa Mulher e mãe também.

Jorge P. Guedes disse...

PARABÉNS MAMÃ! (se é o caso)

UM DIA FELIZ, de qualquer modo!

Abraço.
Jorge P.G.

ASPÁSIA disse...

TERESA

ESPERO QIE TENHAS TIDO UM BOM DIA DA MÃE, POIS UMA DAS TUAS GRANDES PAIXÓES SÃO OS TEUS REBENTOS!
JÁ TINHA LIDO ESTE RELATO DE VIDA DE UM HOMEM QUE DEDICOU A SUA A ORIENTAR O TEMPO DA VIDA DOS OUTROS.
MAIS UMA PESSOA DE GRANDE RIQUEZA INTERIOR E SIMPATIA COM QUEM TIVESTE A SORTE DE TE CRUZAR NAS ESQUINAS DO TEMPO!

Entretanto ESPERO QUE JÁ TENHAS RECUPERADO DA GRIPE, EU LEVEI UM MÊS A VER-ME LIVRE DA MINHA MALEITA...

BEIJINHO SEM HORA MARCADA :)

ASPÁSIA disse...

TERESA

ESPERO QIE TENHAS TIDO UM BOM DIA DA MÃE, POIS UMA DAS TUAS GRANDES PAIXÓES SÃO OS TEUS REBENTOS!
JÁ TINHA LIDO ESTE RELATO DE VIDA DE UM HOMEM QUE DEDICOU A SUA A ORIENTAR O TEMPO DA VIDA DOS OUTROS.
MAIS UMA PESSOA DE GRANDE RIQUEZA INTERIOR E SIMPATIA COM QUEM TIVESTE A SORTE DE TE CRUZAR NAS ESQUINAS DO TEMPO!

Entretanto ESPERO QUE JÁ TENHAS RECUPERADO DA GRIPE, EU LEVEI UM MÊS A VER-ME LIVRE DA MINHA MALEITA...

BEIJINHO SEM HORA MARCADA :)

bettips disse...

Atrasada mas com dois abraços de mãe!

APC disse...

Cada palavrinha tua vale a leitura. E cada pessoa com que nos cruzamos também nos vale a leitura. As trancas à porta da nossa vida, são uma defesa, mas o seu abrir, as mais das vezes, um prazer. Fizeste-me pensar em muita coisa, assim dispersa, fugaz, etérea. Depois fica o que fica... E o que fica é bom!

Mas sabes que vim aqui com um propósito em concreto?! Vinha perguntar-te: - Tu tá doi-doi, T'esa? É que eu "ouvi dizer" que sim, e queria deixar-te os meus sinceros votos de melhoras...

E não me vou sem te dizer que 'tás lindaça naquela foto principal que pudeste no layout! :-) Agora é fazer com que a saúde combine com a aparência! Assim espero! :-)

Bigabraço*