Hesitei em publicar estas memórias no dia em que se celebram 25 anos da morte do Adriano.
Contudo, como privei com ele cerca de dez anos, nos anos 70 e até á sua morte, particularmente na tertúlia de escritores, poetas, cantores, homens do cinema e outros, nos quais eu, anónima, me incluía.
O Adriano era um homem de poucas falas e muitos afectos. Absurdamente puro e ingénuo, tinha aquele olhar de quem nunca vai perder a inocência. Por essa razão, muitos, com poucos escrúpulos, o usaram .
Das vezes que o acompanhei nos concertos, que, graciosamente, dava pelo País, em nome de uma causa que abraçava com a sinceridade dos que ainda acreditavam que podiam construir um Mundo melhor, apesar da sua situação financeira não ser brilhante, quando a sua voz se elevava pelos ares, saíndo daquele corpo de urso de mel, uma qualquer forma de arrepio e êxtase nos invadia o sentir.
Infelizmente vários desencantos o levaram, como introvertido e tímido que era, a beber em excesso.
Fui testemunha numa ida a Santiago do Cacém com ele, sua mulher, o Manuel da Fonseca, autor de tantos poemas por ele cantados, que ía ser homenageado pela Câmara Municipal, os Trovante, ainda uns putos mal conhecidos, corria o ano de 1980, e outros escritores e poetas, de uma cena que se me colou á memória pelas piores razões.
O espectáculo seria só á noite. Todos nos juntámos num opíparo almoço servido com a mestria da cozinha alentejana e bem regado pelo vinho da região que faz estragos mas também nos remete para o Mundo eufórico da criatividade delirante.
A mulher do Adriano avisava-o amiúde para não beber mais porque iria actuar á noite. Mas a euforia de estar com amigos que gostava, confiava, fez com que não conseguisse parar.
O Manel foi dormir a sesta com a Hermínia, sua companheira, outros dar uma volta para desmoer, o Adriano, o Vírgilio e eu, ficámos.
O resultado foi desastroso, pois na hora de actuar, apesar de terem posto duas cadeiras no palco para se apoiar, o seu corpo agigantado balançava como uma folha ao vento, o que não obstou que tenha ainda conseguido lançar a sua voz única, em menos número de canções do que tinha programado, mas as suficientes para homenagear o seu amigo.
A partir dessa data, raras vezes o vi, salvo na Trindade, ou no João Sebastião Bar, habitualmente a beber, com uma tristeza liquída a inundar-lhe os olhos.
Quando ouvi a notícia do seu desaparecimento uma profunda tristeza me invadiu e relembrei a última vez que com ele estivera, em que tinha um adesivo sobre uma ferida feia e de aspecto duvidoso na cara, pouco falou e muito bebeu.
Teresa David-foto retirada da Net
12 comentários:
Linda a sonoridade desta voz intemporal...
Sim, o olhar era belo.
Belo texto, bela foto, bela hoenagem
Obrigado
Abraço
Tristeza líquida que me perpassa ao ler-te. Ainda pergunto ao vento que passa,
o porquê:
de tantos gestos belos e gratuitos não terem sido compreendidos em seu tempo.
Os dele, outros, os nossos.
Obrigada, Teresa, as tuas recordações são vívidas e preciosas.
Um abraço comovido e pleno de imagens e sons de Liberdade.
Ainda me lembro do Adriano, do Zeca Afonso, do Carlos Paredes, do Vitorino, do Zé Mário Branco e outros mais , num espectáculo a seguir ao 25 de Abril, onde o que lhes servia de palco era ... um atrelado de tractor agricola.São imagens que nunca irei esquecer apesar de na altura eu ter os meus 13 anos. Ainda hoje ao ouvir as suas vozes fico arrepiada e as lágrimas correm com uma saudade imensa . Nunca os esquecerei.
abraço fraterno
Ana Paula
OUTRA VOZ QUE NOS DEIXOU CEDO DE MAIS QUANDO AINDA TANTO (EN)CANTO TINHA PARA DAR!
MARCOU MUITOS DE NÓS E TU TIVESTE O PRIVILÉGIO DE SER "MARCADA" TÃO DE PERTO!
OBRIGADA PELA PARTILHA.
BJS
É um privilégio para nós privarmos com alguém que privou com o Adriano! Muito obrigado por partilhares estes teus momentos com alguém que não chegou a viver a liberdade por inteiro!
Muitos beijinhos!!!
Todos nós temos bons e maus momentos...
Deves considerar-te feliz por teres tido a oportunidade de conviver com personagens marcantes do nosso tempo.
Nós tb nos sentimos satisfeitos por partilhares esses momentos connosco.
beijos
Foi uma pena ele não se ter conseguido equilibrar, após o afastamento de alguns amigos, apenas por questões menores, como a "clubite" partidária...
E como relatas, Teresa, o álcool está longe de ser um grande amigo...
Foi-se o homem, permaneceu a voz e força do dizer.
"Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz".
Há pessoas que permanecem no tempo...
Doce beijo
Nada me importaria se bebia muito ou pouco, não fosse o facto ter contribuído para nos deixar demasiado cedo.
Cantava como ninguém, lançando ao vento a poesia. E era autor da música de muitas das mais belas cantigas, também, não se deve esquecer essa realidade.
Um abraço.
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